Seus pés tip-tapeavam
alternadamente no chão. Direita esquerda. Tip-tap. Tip-tap. Seus dedos
tamborilavam no compensado de madeira da carteira. Um dois três quatro. Quatro
três dois um. Um dois três quatro. Quatro três dois um. Na mão esquerda, a
caneta, pênsil, acertava o outro lado da carteira em um ritmo descompassado.
Tic TOC tic tic TOC TOC tic tic TOC.
Todos os movimentos então pararam de uma vez só. Mãos e pés batendo em seus respectivos apoios, trazendo um estrondo misto de chão e madeira e plástico de caneta. Com os olhos fechados ele inspirou fundo e expirou pela boca, em um grunhido mais alto e aberto do que o necessário, e abriu os olhos.
Todos na sala o encaravam.
Rob fingiu que nada acontecia. Encarando cantos vazios no teto. Suas próprias unhas. Verificando os bolsos. Até que todos voltaram aos seus próprios nervosismos.
Uma prova não deveria significar o resto da vida de alguém, pensou pela bilionésima vez enquanto se espalhava na carteira e passava os olhos pela sala. Pela bilionésima vez.
A vida de Rob era governada por quatro letras simples. TDAH. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Desde criança nada conseguia prender sua atenção por muito tempo. Ele sempre parava atividades na metade. Pensamentos na metade. Sempre estava fazendo alguma coisa diferente. Pulando de coisa em coisa que brilhava como prioridade naquele momento. Linhas de raciocínio sempre se perdiam pra paisagem. Comidas queimavam esquecidas no fogo. Exercícios de prova deixados pela metade.
A mãe de Rob sempre foi condescendente com a “dificuldade” do filho. E era ela o motivo dele estar sentado em sua carteira esperando o horário da prova já havia 20 minutos. E Rob era muito grato à sua mãe por isso. Acostumado com seu próprio problema ele já estava preparado pra sair de casa uma hora antes do horário da prova, voltar infinitas vezes pra buscar alguma coisa, verificar alguma coisa, ou simplesmente por precaução, e ainda assim chegar atrasado pra prova. Com alguma coisa bem importante faltando. Mas sua mãe havia juntado TUDO que ele poderia precisar em um pacotinho, e entregado pra ele no momento em que ele se preparava pra sair, pela primeira vez de muitas, da própria casa. Primeira vez que se revelou a única.
Faltando ainda 20 minutos pro inicio da prova, e sentado na última carteira da fileira do meio, Rob scaneava a sala novamente, em busca de algo que o entretece. A posição no fundo da sala parecia uma vingança do universo por ele não ter se atrasado, pouquíssimos outros assentos poderiam ter mais coisas pra distrair Rob das equações e senos e cossenos do que ter visão pra toda a sala, todos os presentes. Pior que isso só se seu lugar fosse do lado da janela, onde todo e qualquer pássaro ou nuvem ou mudança de sombra capturaria sua atenção. No fundo, Rob esperava que observar tanto assim o resto das coisas antes da prova iria criar uma imagem fixa e satisfatória da mesma em sua cabeça, e ele não iria se distrair quando não pudesse.
A sala possuía cinco fileiras de umas sete carteiras cada, deixando à vista imediata de Rob uns nove lugares, que no momento não estavam todos ocupados. Diretamente à esquerda dele estava uma garota de cabelos compridos e castanhos, uma blusa listrada e calça jeans, ela comia um daqueles biscoitinhos salgados, sempre pegando com a mão direita na embalagem, segurando o biscoito com o indicador e polegar esquerdos, mordendo, soltando o biscoito novamente na embalagem e limpando os dedos que usara, esfregando um no outro, duas vezes. Do outro lado, na diagonal à direita, sentava um garoto, gordo, de cabelos loiros, ondulados e cheios, ele usava uma daquelas jaquetas pretas de motoqueiro e coçava bastante a parte de trás da cabeça, e o lado do rosto, onde a barba era mais espessa. Diretamente à sua frente sentava uma garota bem magra, de ombros bem estreitos, sobre eles uma quantidade enorme de cachos e caracóis, o cabelo castanho bem escuro dava voltas e mais voltas ao redor de si mesmo. Rob tentara contar as voltinhas pra passar o tempo, mas sempre perdia a conta ou quando alguém entrava na sala ou fazia algum barulho. Sentado na diagonal à esquerda, em frente à garota que abria agora uma barra de chocolate, um garoto vestido de branco, cabelos liso e sem nenhum acessório, como mochila ou estojo, acabava de se sentar, olhando diretamente pra frente. À sua direita, na carteira além da adjacente, que estava vazia, sentava um garoto com óculos enormes, calças cáqui (cor que Rob achava ridícula por ser sem graça demais), e cabelo desarrumado.
E claro, havia também A Professora.
Não que ela fosse mesmo a professora dele, apenas a inspetora encarregada dessa sala, ela que entregaria as provas e verificaria identidades e outros pormenores. Mas tudo nela gritava PROFESSORA. Ela poderia muito bem estar num outdoor de volta às aulas, material escolar, num filme de criança ou até num filme pornô. Com seus trinta e poucos anos, salto discreto que fazia clok clok enquanto andava, óculos retangulares um pouco abaixo da linha de visão, unhas de cor pérola, muito bem feitas, camisa branca fechada na frente com botões e coberta por um colete cinza, cabelo preto, muito preto, muito brilhante, armado em um coque e caindo ao lado do rosto, levemente ondulado, em duas mechas compridas, e apesar da roupa rente e social, era possível perceber curvas bem sinuosas em sua cintura e busto.
Era sempre pra ela que a atenção de Rob voltava. Ele ricocheteava de um lado ao outro da sala, sempre seguindo aquilo que chamava sua atenção. E ela chamava muita atenção. Não que Rob estivesse torcendo o pescoço, virando-o bruscamente como um galo procurando briga. Ele já se acostumara a ser discreto, observar apenas com os olhos e sem o corpo, ele já chamava atenção demais naturalmente, por ser alto e atlético, ou fazendo barulho sem perceber, como fizera há instantes, às vezes ele simplesmente parava e ficava pensando, em tudo e em nada ao mesmo tempo, encarando o infinito e seguindo todas as linhas de pensamento desconexas que apareciam do nada.
O nervosismo apertava novamente, era como se ele precisasse sair do próprio corpo, suas entranhas torcendo, os músculos retraindo, a cabeça zunindo. O desespero começa a preencher os buracos deixados pelo tempo e o corpo começa a se movimentar sozinho, como se pra sacudir todas as sensações ruins pra fora. Querendo correr, mas precisando ficar sentado. Querendo gritar, mas precisando ficar quieto. Rob não usava nenhum tipo de droga, lícita ou ilícita, mas ele tinha uma bela certeza de que era exatamente essa a fissura que surgia em viciados com abstinência. O “preciso de um cigarro/trago/tiro/dose” de Rob. Preciso fazer alguma coisa.
Suas mãos atacaram o estojo que sua mãe preparara, um movimento rápido porem suave, firmando-o no lugar com uma mão e abrindo o zíper com a outra. Rob começou a tirar todo o conteúdo que havia lá dentro e colocar na carteira. Uma sequencia compassada de plics e plecs e placs. O estojo esvaziando e a mesa enchendo. Dois lápis tipo dois, de superfície amarelada e com vários “lados”, pra evitar que rolasse, três canetas, azul, vermelha e preta, sem contar a caneta azul claro de ponta fina que estava em sua mão, duas borrachas, uma verde e outra de duas cores e duas texturas, ambas em formato de prancha para não rolar pra longe, as únicas que sua mãe guardara antes que eles a perdesse no chão de alguma sala de aula, canetinhas hidrográficas, roxa e rosa, ele não usava isso à uma década, e apenas dentro de casa, duas réguas, uma de madeira outra de plástico, duas lapiseiras, uma branca zero-cinco e outra vermelha zero-sete, o estojo ainda continha tesoura, cola bastão, compasso, apontador, grafite pra as lapiseiras e um cortador de unhas. Tudo apertadinho e organizadinho, provavelmente da única maneira possível para caber dentro do pano escuro e surrado de muitos anos. Rob sabia que ia ter muito trabalho pra colocar tudo de volta, e que provavelmente falharia em encontrar espaço para tudo, da maneira que sua mãe, sempre atenciosa, fizera. Isso causava um alívio pela perspectiva de ter o que fazer, mas certa apreensão por ter que arrumar as coisas no lugar também. Rob não gostava de perder tempo arrumando.
No meio do processo de desfazer o que havia feito, Rob se pegou olhando pro seu apontador. Ele gostava desse apontador. Era o mesmo apontador que ele usava nas bases do ensino fundamental. Um pequeno paralelepípedo de acrílico, uma das faces menores com um buraco onde se encaixava o lápis. O apontador em si era de plástico amarelo, um dia brilhante e chamativo o suficiente para não ser esquecido pelo garoto com a atenção desgovernada, hoje embaçado e acinzentado por grafite de lápis. Rob passou a usar lapiseiras muito cedo por ter muitos problemas com lápis e apontadores. Ele queria a ponta perfeita e afiada como nos comerciais e filmes, mas sempre quebrava nos apontadores que usava. Até começar a usar o apontador. Além de chamativo, Rob gostava deste apontador porque ele tinha um “macete”. Um jeitinho todo especial pra usar, que dava certo. Algo só dele. Duas voltas “e meia”, e a ponta do lápis ficava perfeita. O “macete” era a “meia” volta, um movimento acostumado na mão de Rob, e só na dele. O apontador fazia o que ele queria do jeito que ele queria, por isso ele sempre lembrava de guardar. No entanto lapiseiras ficavam melhor na sua mão, ele gostava de fingir que sabia desenhar e pra isso usava lapiseiras, e o apontador amarelo perdeu a utilidade, e foi guardado junto com todas as coisas antigas que sua mãe havia preparado pra ele.
Como previsto, o material voltava completamente desconexo pro lugar de onde saíra. Sua mãe havia entregado o estojo inchado, quase estourando de tanta coisa, mas ainda assim num formato quase cilíndrico, uniforme. A criação de Rob, no entanto, lembrava obras de artes retorcidas que ele vira um dia numa revista enquanto esperava sua vez no dentista, ou ainda um monstro deformado de um dos jogos que ele jogava no computador. Uma régua e uma caneta teimavam em sair inclinadas pela abertura, impedindo o zíper de fechar e deixando a bagunça muito parecida com uma fratura exposta na perna. As mesmas mãos rápidas e precisas que abriram o estojo agora o pegavam pelos lados, com a barriga aberta pra baixo, esvaziando seu conteúdo novamente na carteira com um som de pancada de chuva. Rob era impaciente e detestava ter que repetir alguma coisa, mas sabia que não ia poder fazer a prova com a mesa cheia de tralha, então recomeçou a preencher o vazio, com um pouco mais de raiva, muito mais nervosismo, mas uma pitada a mais de dedicação.
Não demorou muito pros seus olhos, e sua atenção, o traírem, e ele focar A Professora, apoiada no batente da porta e conversando casualmente com outro inspetor de outra sala. Um cara alto e de peito largo, cabelos escassos, apenas rodeando a cabeça num semicírculo acima das orelhas, sua barriga era grande o suficiente para compensar a altura e dar a ele uma fisionomia quadrada. Rob então percebeu que não se tratava de um outro inspetor, o homem tinha pinta de chefe, superior de qualquer coisa, olhava pra ela com a expressão dura de quem tem que mostrar que da ordens e não faz pedidos, e também um pouco de desejo, ele via a beleza dela e seus olhos, miúdos e escuros, paravam em locais estratégicos da mulher. Claro que você também não é ninguém pra julgar, já que tá secando a moça faz meia hora, pensou enquanto tentava discernir os sussurros que vinham da porta e tinham que atravessar toda a sala até alcança-lo. Bem que eu queria ouvir a voz dela direito, aposto que tem voz bonita, não que ela vá passar aqui no final da sala onde vai ter só que virar e voltar pelo caminho, pelo menos ia dar pra dar uma boa olhada na bunda dela, tô ligado que ela anda desfilandinho. Porra o quê que eu tô pensando? Não sei nem o nome dela! Se bem que eu curto uma mulher mais velha e talz. Não que eu fosse chegar nela no meio da prova, tô pensando altas merdas. Caralho cadê o cara?
Em algum momento entre mergulhar, e quase se afogar, em seus próprios pensamentos, e vir à tona, o chefe gordo e careca tinha ido embora, deixando A Professora olhando pela passagem da porta com um meio sorriso no rosto, forçado, duro e gelado, puro e completo nervosismo, parecia que era ela que ia encarar uma prova que iria decidir praticamente o resto da vida dela, uma prova que iria exigir atenção total de quem a fazia, onde erros minúsculos e bobos queimavam e destruíam pontes e caminhos e futuros. Nossa mas o que foi que aquele cara disse pra deixar esse rostinho tão lindo tão triste? Será que ele ameaçou despedir ela? Cortar o salario? Matar o cachorro? E por que eu to pensando nisso? Não vai levar a lugar nenhum, eu devia estar revisando a matéria ou qualquer coisa assim, eu não tava fazendo alguma coisa antes de – “AARGH”.
Esse era outro problema de se perder nos pensamentos, seu corpo, ainda com aquela sensação estranha e desesperadora de querer sair de dentro de si mesmo, se mexia sem que ele soubesse. De alguma maneira, enquanto seus pensamentos vagavam entra a moralidade e a inspetora bonita, Rob encontrou uma maneira de enfiar a ponta da lapiseira zero-cinco debaixo da unha de seu dedão esquerdo, e assim que a bolha de sangue se formou ele enfiou o dedão na boca, tocando a ferida com a língua, sentindo uma pontada intensa no dedo e o gosto metálico de sangue na boca. Pronto, GÊNIO! Agora você vai, não só ficar sentindo dor a prova inteira e perder completamente o pinguinho de concentração que você tiver, como vai manchar a porra toda de sangue e não vão conseguir ler suas respostas e – CHEGA!! RELÓGIO!!
Ele retirou a mão da boca e voltou o pulso para cima, franzindo o rosto e encarando o relógio, como se isso fosse fazer o tempo correr mais rápido ou a hora da prova chegar logo.
Ainda mais quinze minutos.
Rob parou, como sempre fazia quando o horário o surpreendia. A verdade era que suas ações eram diretas e rápidas demais. O scan feito na sala, a conversa observada, as idas e voltas de material na carteira, todas as divagações e o machucado que ele fez no dedo, tudo tinha sido feito em, literalmente, cinco minutos. Agora que ele parara pra pensar, a conversa entre a inspetora e o superior tinha durado pouquíssimo mais de um minuto, por isso que o cara tinha “sumido” enquanto ele pensava. Respirou bem fundo novamente, tentando ser mais devagar do que da primeira vez, exalando bem mais lentamente do que de costume, conseguindo sentir o coração batendo forte, protestando contra a respiração lenta no meio de tanto stress. Podia ser pior, o tempo podia estar voltando.
Plec!
Rob olhou imediatamente para baixo para ver se não estava se mutilando, novamente, sem perceber, seu queixo se aproximando do peito, mesmo sabendo que era da frente que o barulho vinha. Ele inspecionou a carteira e as mãos de qualquer maneira, lembrando então do seu dedo machucado, o sangue quase sujando a mesa. Aproveitando a cabeça levemente inclinada pra baixo ele enfiou novamente o dedão na boca, mais pontada de dor, mais gosto de sangue, antes de olhar pra fonte do barulho.
O garoto de cabelos lisos, vestido de branco, sentado à sua diagonal esquerda. Essa era a fonte. Ele não trouxera mochila ou material visível, mas sua calça, também branca, tinha muitos bolsos, e era de um deles que ele tinha tirado o lápis que fizera o barulho. O garoto pegou o lápis pela ponta de grafite e o segurou, ereto, sobre a carteira, apoiado sobre ela pela base traseira. Diferente dos lápis de Rob, curtos, de várias faces e com uma borracha, já moída e mastigada, na ponta, o lápis do garoto era completamente preto, redondo, inteiro, com o mesmo comprimento original de fábrica, uma ponta perfeita e afiada, outra completamente plana. E agora o lápis estava de pé sobre a mesa, apoiado apenas na sua superfície plana, enquanto o garoto afastava as mãos lentamente, arrastando-as na mesa, fazendo proteção caso o lápis decidisse cair. E assim todos permaneceram por um minuto inteiro. Lápis em pé. Mãos ao redor. Rob Olhando.
Com um olhar abobado, Rob olhou pra sua carteira. Quase todos os materiais estavam guardados, salvo as borrachas e o apontador, mas ele precisava tentar aquilo. Os lápis tinham sido a primeira coisa que ele guardara. Mas ele precisava tentar isso. Então lá se foram todos os materiais pra mesa novamente. Tirar apenas os lápis não tinha sido possível, não em duas tentativas, melhor tirar tudo do caminho de uma vez, afinal de contas, depois de tantas vezes, Rob já estava pegando o jeito de guardar as coisas, mas após tirar todos os obstáculos e chegar ao objeto desejado, ele lembrou, olhando para seus lápis, que não era possível apoiá-los em borrachas mordidas.
A impossibilidade de equilibrar os próprios lápis foi, em certo aspecto, uma vantagem, pois isso obrigou Rob a tentar, claramente sem sucesso, a equilibrar TODOS os outros materiais, inclusive a tesoura e o cortador de unhas, afinal de contas, eles já estavam ali mesmo. Mas cada um dos trecos que ele tentou equilibrar de pé caiu para algum lado, emitindo um plec ou um plac, como fizeram da primeira vez que saíram do invólucro.
Olhando todos os materiais diferentes caídos pela carteira, como um exército massacrado em uma batalha impossível, Rob olhou pra sua última esperança, pegou o apontador, com seis lados planos, e plantou bem no centro dos soldados caídos. Pronto! Esse não cai!
Plec!
O barulho veio da frente, como o anterior, mas Rob não conseguiu evitar olhar fixamente, com os mesmos olhos duros e rosto franzido, pra ter certeza que ele estava alí, de pé, maior comprimento pra cima. Não era um lápis, mas era melhor que nada. Afinal de contas, como esse moleque consegue!?
Olhando pra frente ele pode ver novamente, claramente, as mãos estrategicamente posicionadas naquela posição de segurança, o lápis perfeitamente equilibrado. Estático. Sem se mexer ou vibrar. De ponta cabeça. Apoiado apenas pelo ponto em que sua grafite, tão bem apontada que parecia perigosa, encontrava o plano liso da mesa.
Os três ficaram parados. Estáticos. Enquanto o tempo passava. Tudo passava e mudava em volta. Nada percebia o que Rob percebia. Aquela cena que desafiava qualquer lógica. Aquele parado tão absoluto que parecia segurar tudo à sua volta no lugar. Só o tempo caminhava. Só o lápis importava.
Ainda encarando a cena, com movimentos que apenas permeavam a consciência, Rob pegou uma caneta, colocou com a ponta na mesa, uma mão fazendo um anel em volta para que o fatídico barulho de caneta na mesa não quebrasse a santidade da cena, e soltou. A caneta tocou as coisas da sua mão de segurança, como previsto, seu rosto se virou do lápis equilibrado para o caído, e de volta para o primeiro, seu queixo caiu lentamente. Eu não sou nenhum gênio da física. . . Mas essa porra é completamente impossível. . . e foda. . .
“A Prova começa em cinco minutos”, quebrou o silencio a voz macia e incerta da inspetora, vindo do outro lado da sala, ela segurava um enorme envelope marrom, transbordando com folhas brancas. “Vou começar a entregar as folhas de resposta agora.”
Plec-prrrrrrrrrrrrr-CLAC!
Dessa vez não houve movimentos errados, olhares pra lados equivocados. O corpo de Rob, impulsionado pelos músculos tensos e ávidos por movimento, se dobrou pra frente, perna direita enrolada no pé da cadeira para manter o equilíbrio, o corpo descendo de lado pela lateral da mesa da carteira, os braços compridos se esticando, uma serpente dando o bote, capturando o lápis caído entre cinco presas e puxando-o para o campo de batalha na mesa, pros outros soldados caídos e derrotados. A mão direita, que ficara apoiada na mesa, para um pouco mais de estabilidade, capturou num tapa o apontador, o único de pé entre os utensílios. As duas mãos se juntaram e mágica foi feita. Uma, duas voltas, e meia. O lápis renasceu em sua mão. A ponta novamente precisa e afiada. Imaculada. Rob estendeu a obra de arte para seu dono.
Era a primeira vez que o via de frente. Seus cabelos eram muito lisos, numa cor acinzentada, cor de pelo de rato, cortado rente aos olhos, como uma tigela, seu rosto era bem pálido, os olhos eram um azul bem claro, cristalino, quase transparente, com pupilas muito pretas num fundo branco sem qualquer risco de vaso sanguíneo, os lábios um tanto bicudos, com o beiço inferior um pouco protuberantes, acima do nariz pequeno e curto, os olhos pareciam também pequenos, e um pouco próximos demais. O dono do lápis olhava para Rob, as pupilas voavam descontroladamente entre o lápis e os olhos, ambos na expectativa, esperando uma reação. Uma mão insegura se esticou vagarosamente em direção à mão estendida, recuando bruscamente quando uma segunda mão se juntou à primeira, segurando outro objeto. “Fica com o apontador também, caso aconteça outro acidente”, um sorriso se abriu em seus lábios enquanto ele falava, “duas voltas e meia e ele fica perfeito, okay?”. A mão insegura pegou ambos objetos de um tapa só, recuando rapidamente como se temesse que eles estivessem quentes ou que uma cobra fosse sair da manga de Rob e picar seu braço. Enquanto o garoto se virava, sem dizer uma palavra de agradecimento ou coisa parecida, Rob percebeu um outro lápis na outra mão, sem dúvida vindo de um dos bolsos da calça branca.
Não era hora de se preocupar com isso, Rob recebeu sua folha de respostas e se concentrou nela como se contivesse as respostas pras suas perguntas, ao invés de ser apenas uma folha branca, com muitos espaços pra escrever. Cada centímetro quadrado de folha imaculada parecia esconder uma resposta que ele iria precisar, e talvez encará-la fosse trazer essas respostas à sua mente. Ou talvez ele simplesmente precisasse de alguma outra coisa em que se concentrar algo que não fosse as pernas longas e sedosas d’A Professora, ou algum outro participante da prova fazendo mais alguma coisa que parecesse impossível. Menos que cinco minutos o separavam do momento fatídico, e assim que a prova começasse e ele se concentrasse em fazê-la, nada mais poderia abalar sua concentração e determinação. Ou pelo menos era isso que ele esperava.
Vamos começar pelo mais básico. Começou colocando seu próprio nome em cada uma das folhas, assinando em todas as linhas em branco que ficavam no topo da página de frente. Nome e assinatura elas pediam, linhas em branco uma do lado da outra, e era assim que ele as preenchia, com seu próprio nome em letras de forma garrafais, e ao lado, em sua letra cursiva corrida e atropelada, sua assinatura.
Alguma coisa o chamava para a mesa do garoto de olhos juntos e cabelo liso, algo como uma coceira em sua testa que o fazia levantar a cabeça, uma inquietação nos olhos que os faziam ir de um lado a outro e sempre parar na posição um pouco acima e um pouco à esquerda, fazendo sua visão permear o garoto que se concentrava em sua própria folha de prova. Ou era nos lápis que ele se concentrava? Sim era o lápis. Rob precisava por seu nome na sétima e penúltima folha de respostas mas ele estava se certificando que era no lápis em que o garoto se concentrava. Não um, mas dois agora. Duas torres gêmeas e negras erguidas uma do lado da outra, com suas bases estreitas e pontuais, seus topos planos e paralelos ao teto.
“Eu vou começar a distribuir as folhas de questões agora tudo bem?”, soou novamente a inspetora, vindo do outro lado da sala, perto da porta, tão distante de Rob, “Por favor não virem as folhas até eu dizer que vocês podem, quem for pego olhando as questões estará automaticamente desclassificado”. As palavras saíam automáticas e robóticas de sua boca. O que diabos aconteceu pra ela ficar tão nervosa? E esse moleque com os lápis!? Como ele consegue fazer isso? E como que era a fórmula de momento elétrico mesmo? Tinha uns Qs e uns Us e sei lá. Será que tinha um poema ou musiquinha pra lembrar? Porra e essas folhas completamente brancas. Se tiver que construir um gráfico eu vou ter que fazer ele do zero? Ainda bem que minha mãe colocou umas réguas aqui pra mim. Espero que ela esteja bem, ela costuma comer mal quando fica preocupada comigo. Mãe por favor não passa fome, eu to bem aqui, só um pouquinho incomodado. Caralho ela já chegou aqui?
A professora parou ao lado de sua carteira e entregou um calhamaço de folhas, essas cheias de questões escritas em preto, mesmo com as costas em branco pra cima era possível ver as linhas escritas das questões, linhas e mais linhas de perguntas elaboradas em tinta preta, se embaralhando por entre as folhas de papel branco. Rob tentou ler as últimas questões pelo reflexo do papel, qualquer coisa que ele pudesse assimilar antes do verdadeiro início da prova seria útil, mas não foi possível. Não com aquele perfume.
Todos os movimentos então pararam de uma vez só. Mãos e pés batendo em seus respectivos apoios, trazendo um estrondo misto de chão e madeira e plástico de caneta. Com os olhos fechados ele inspirou fundo e expirou pela boca, em um grunhido mais alto e aberto do que o necessário, e abriu os olhos.
Todos na sala o encaravam.
Rob fingiu que nada acontecia. Encarando cantos vazios no teto. Suas próprias unhas. Verificando os bolsos. Até que todos voltaram aos seus próprios nervosismos.
Uma prova não deveria significar o resto da vida de alguém, pensou pela bilionésima vez enquanto se espalhava na carteira e passava os olhos pela sala. Pela bilionésima vez.
A vida de Rob era governada por quatro letras simples. TDAH. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Desde criança nada conseguia prender sua atenção por muito tempo. Ele sempre parava atividades na metade. Pensamentos na metade. Sempre estava fazendo alguma coisa diferente. Pulando de coisa em coisa que brilhava como prioridade naquele momento. Linhas de raciocínio sempre se perdiam pra paisagem. Comidas queimavam esquecidas no fogo. Exercícios de prova deixados pela metade.
A mãe de Rob sempre foi condescendente com a “dificuldade” do filho. E era ela o motivo dele estar sentado em sua carteira esperando o horário da prova já havia 20 minutos. E Rob era muito grato à sua mãe por isso. Acostumado com seu próprio problema ele já estava preparado pra sair de casa uma hora antes do horário da prova, voltar infinitas vezes pra buscar alguma coisa, verificar alguma coisa, ou simplesmente por precaução, e ainda assim chegar atrasado pra prova. Com alguma coisa bem importante faltando. Mas sua mãe havia juntado TUDO que ele poderia precisar em um pacotinho, e entregado pra ele no momento em que ele se preparava pra sair, pela primeira vez de muitas, da própria casa. Primeira vez que se revelou a única.
Faltando ainda 20 minutos pro inicio da prova, e sentado na última carteira da fileira do meio, Rob scaneava a sala novamente, em busca de algo que o entretece. A posição no fundo da sala parecia uma vingança do universo por ele não ter se atrasado, pouquíssimos outros assentos poderiam ter mais coisas pra distrair Rob das equações e senos e cossenos do que ter visão pra toda a sala, todos os presentes. Pior que isso só se seu lugar fosse do lado da janela, onde todo e qualquer pássaro ou nuvem ou mudança de sombra capturaria sua atenção. No fundo, Rob esperava que observar tanto assim o resto das coisas antes da prova iria criar uma imagem fixa e satisfatória da mesma em sua cabeça, e ele não iria se distrair quando não pudesse.
A sala possuía cinco fileiras de umas sete carteiras cada, deixando à vista imediata de Rob uns nove lugares, que no momento não estavam todos ocupados. Diretamente à esquerda dele estava uma garota de cabelos compridos e castanhos, uma blusa listrada e calça jeans, ela comia um daqueles biscoitinhos salgados, sempre pegando com a mão direita na embalagem, segurando o biscoito com o indicador e polegar esquerdos, mordendo, soltando o biscoito novamente na embalagem e limpando os dedos que usara, esfregando um no outro, duas vezes. Do outro lado, na diagonal à direita, sentava um garoto, gordo, de cabelos loiros, ondulados e cheios, ele usava uma daquelas jaquetas pretas de motoqueiro e coçava bastante a parte de trás da cabeça, e o lado do rosto, onde a barba era mais espessa. Diretamente à sua frente sentava uma garota bem magra, de ombros bem estreitos, sobre eles uma quantidade enorme de cachos e caracóis, o cabelo castanho bem escuro dava voltas e mais voltas ao redor de si mesmo. Rob tentara contar as voltinhas pra passar o tempo, mas sempre perdia a conta ou quando alguém entrava na sala ou fazia algum barulho. Sentado na diagonal à esquerda, em frente à garota que abria agora uma barra de chocolate, um garoto vestido de branco, cabelos liso e sem nenhum acessório, como mochila ou estojo, acabava de se sentar, olhando diretamente pra frente. À sua direita, na carteira além da adjacente, que estava vazia, sentava um garoto com óculos enormes, calças cáqui (cor que Rob achava ridícula por ser sem graça demais), e cabelo desarrumado.
E claro, havia também A Professora.
Não que ela fosse mesmo a professora dele, apenas a inspetora encarregada dessa sala, ela que entregaria as provas e verificaria identidades e outros pormenores. Mas tudo nela gritava PROFESSORA. Ela poderia muito bem estar num outdoor de volta às aulas, material escolar, num filme de criança ou até num filme pornô. Com seus trinta e poucos anos, salto discreto que fazia clok clok enquanto andava, óculos retangulares um pouco abaixo da linha de visão, unhas de cor pérola, muito bem feitas, camisa branca fechada na frente com botões e coberta por um colete cinza, cabelo preto, muito preto, muito brilhante, armado em um coque e caindo ao lado do rosto, levemente ondulado, em duas mechas compridas, e apesar da roupa rente e social, era possível perceber curvas bem sinuosas em sua cintura e busto.
Era sempre pra ela que a atenção de Rob voltava. Ele ricocheteava de um lado ao outro da sala, sempre seguindo aquilo que chamava sua atenção. E ela chamava muita atenção. Não que Rob estivesse torcendo o pescoço, virando-o bruscamente como um galo procurando briga. Ele já se acostumara a ser discreto, observar apenas com os olhos e sem o corpo, ele já chamava atenção demais naturalmente, por ser alto e atlético, ou fazendo barulho sem perceber, como fizera há instantes, às vezes ele simplesmente parava e ficava pensando, em tudo e em nada ao mesmo tempo, encarando o infinito e seguindo todas as linhas de pensamento desconexas que apareciam do nada.
O nervosismo apertava novamente, era como se ele precisasse sair do próprio corpo, suas entranhas torcendo, os músculos retraindo, a cabeça zunindo. O desespero começa a preencher os buracos deixados pelo tempo e o corpo começa a se movimentar sozinho, como se pra sacudir todas as sensações ruins pra fora. Querendo correr, mas precisando ficar sentado. Querendo gritar, mas precisando ficar quieto. Rob não usava nenhum tipo de droga, lícita ou ilícita, mas ele tinha uma bela certeza de que era exatamente essa a fissura que surgia em viciados com abstinência. O “preciso de um cigarro/trago/tiro/dose” de Rob. Preciso fazer alguma coisa.
Suas mãos atacaram o estojo que sua mãe preparara, um movimento rápido porem suave, firmando-o no lugar com uma mão e abrindo o zíper com a outra. Rob começou a tirar todo o conteúdo que havia lá dentro e colocar na carteira. Uma sequencia compassada de plics e plecs e placs. O estojo esvaziando e a mesa enchendo. Dois lápis tipo dois, de superfície amarelada e com vários “lados”, pra evitar que rolasse, três canetas, azul, vermelha e preta, sem contar a caneta azul claro de ponta fina que estava em sua mão, duas borrachas, uma verde e outra de duas cores e duas texturas, ambas em formato de prancha para não rolar pra longe, as únicas que sua mãe guardara antes que eles a perdesse no chão de alguma sala de aula, canetinhas hidrográficas, roxa e rosa, ele não usava isso à uma década, e apenas dentro de casa, duas réguas, uma de madeira outra de plástico, duas lapiseiras, uma branca zero-cinco e outra vermelha zero-sete, o estojo ainda continha tesoura, cola bastão, compasso, apontador, grafite pra as lapiseiras e um cortador de unhas. Tudo apertadinho e organizadinho, provavelmente da única maneira possível para caber dentro do pano escuro e surrado de muitos anos. Rob sabia que ia ter muito trabalho pra colocar tudo de volta, e que provavelmente falharia em encontrar espaço para tudo, da maneira que sua mãe, sempre atenciosa, fizera. Isso causava um alívio pela perspectiva de ter o que fazer, mas certa apreensão por ter que arrumar as coisas no lugar também. Rob não gostava de perder tempo arrumando.
No meio do processo de desfazer o que havia feito, Rob se pegou olhando pro seu apontador. Ele gostava desse apontador. Era o mesmo apontador que ele usava nas bases do ensino fundamental. Um pequeno paralelepípedo de acrílico, uma das faces menores com um buraco onde se encaixava o lápis. O apontador em si era de plástico amarelo, um dia brilhante e chamativo o suficiente para não ser esquecido pelo garoto com a atenção desgovernada, hoje embaçado e acinzentado por grafite de lápis. Rob passou a usar lapiseiras muito cedo por ter muitos problemas com lápis e apontadores. Ele queria a ponta perfeita e afiada como nos comerciais e filmes, mas sempre quebrava nos apontadores que usava. Até começar a usar o apontador. Além de chamativo, Rob gostava deste apontador porque ele tinha um “macete”. Um jeitinho todo especial pra usar, que dava certo. Algo só dele. Duas voltas “e meia”, e a ponta do lápis ficava perfeita. O “macete” era a “meia” volta, um movimento acostumado na mão de Rob, e só na dele. O apontador fazia o que ele queria do jeito que ele queria, por isso ele sempre lembrava de guardar. No entanto lapiseiras ficavam melhor na sua mão, ele gostava de fingir que sabia desenhar e pra isso usava lapiseiras, e o apontador amarelo perdeu a utilidade, e foi guardado junto com todas as coisas antigas que sua mãe havia preparado pra ele.
Como previsto, o material voltava completamente desconexo pro lugar de onde saíra. Sua mãe havia entregado o estojo inchado, quase estourando de tanta coisa, mas ainda assim num formato quase cilíndrico, uniforme. A criação de Rob, no entanto, lembrava obras de artes retorcidas que ele vira um dia numa revista enquanto esperava sua vez no dentista, ou ainda um monstro deformado de um dos jogos que ele jogava no computador. Uma régua e uma caneta teimavam em sair inclinadas pela abertura, impedindo o zíper de fechar e deixando a bagunça muito parecida com uma fratura exposta na perna. As mesmas mãos rápidas e precisas que abriram o estojo agora o pegavam pelos lados, com a barriga aberta pra baixo, esvaziando seu conteúdo novamente na carteira com um som de pancada de chuva. Rob era impaciente e detestava ter que repetir alguma coisa, mas sabia que não ia poder fazer a prova com a mesa cheia de tralha, então recomeçou a preencher o vazio, com um pouco mais de raiva, muito mais nervosismo, mas uma pitada a mais de dedicação.
Não demorou muito pros seus olhos, e sua atenção, o traírem, e ele focar A Professora, apoiada no batente da porta e conversando casualmente com outro inspetor de outra sala. Um cara alto e de peito largo, cabelos escassos, apenas rodeando a cabeça num semicírculo acima das orelhas, sua barriga era grande o suficiente para compensar a altura e dar a ele uma fisionomia quadrada. Rob então percebeu que não se tratava de um outro inspetor, o homem tinha pinta de chefe, superior de qualquer coisa, olhava pra ela com a expressão dura de quem tem que mostrar que da ordens e não faz pedidos, e também um pouco de desejo, ele via a beleza dela e seus olhos, miúdos e escuros, paravam em locais estratégicos da mulher. Claro que você também não é ninguém pra julgar, já que tá secando a moça faz meia hora, pensou enquanto tentava discernir os sussurros que vinham da porta e tinham que atravessar toda a sala até alcança-lo. Bem que eu queria ouvir a voz dela direito, aposto que tem voz bonita, não que ela vá passar aqui no final da sala onde vai ter só que virar e voltar pelo caminho, pelo menos ia dar pra dar uma boa olhada na bunda dela, tô ligado que ela anda desfilandinho. Porra o quê que eu tô pensando? Não sei nem o nome dela! Se bem que eu curto uma mulher mais velha e talz. Não que eu fosse chegar nela no meio da prova, tô pensando altas merdas. Caralho cadê o cara?
Em algum momento entre mergulhar, e quase se afogar, em seus próprios pensamentos, e vir à tona, o chefe gordo e careca tinha ido embora, deixando A Professora olhando pela passagem da porta com um meio sorriso no rosto, forçado, duro e gelado, puro e completo nervosismo, parecia que era ela que ia encarar uma prova que iria decidir praticamente o resto da vida dela, uma prova que iria exigir atenção total de quem a fazia, onde erros minúsculos e bobos queimavam e destruíam pontes e caminhos e futuros. Nossa mas o que foi que aquele cara disse pra deixar esse rostinho tão lindo tão triste? Será que ele ameaçou despedir ela? Cortar o salario? Matar o cachorro? E por que eu to pensando nisso? Não vai levar a lugar nenhum, eu devia estar revisando a matéria ou qualquer coisa assim, eu não tava fazendo alguma coisa antes de – “AARGH”.
Esse era outro problema de se perder nos pensamentos, seu corpo, ainda com aquela sensação estranha e desesperadora de querer sair de dentro de si mesmo, se mexia sem que ele soubesse. De alguma maneira, enquanto seus pensamentos vagavam entra a moralidade e a inspetora bonita, Rob encontrou uma maneira de enfiar a ponta da lapiseira zero-cinco debaixo da unha de seu dedão esquerdo, e assim que a bolha de sangue se formou ele enfiou o dedão na boca, tocando a ferida com a língua, sentindo uma pontada intensa no dedo e o gosto metálico de sangue na boca. Pronto, GÊNIO! Agora você vai, não só ficar sentindo dor a prova inteira e perder completamente o pinguinho de concentração que você tiver, como vai manchar a porra toda de sangue e não vão conseguir ler suas respostas e – CHEGA!! RELÓGIO!!
Ele retirou a mão da boca e voltou o pulso para cima, franzindo o rosto e encarando o relógio, como se isso fosse fazer o tempo correr mais rápido ou a hora da prova chegar logo.
Ainda mais quinze minutos.
Rob parou, como sempre fazia quando o horário o surpreendia. A verdade era que suas ações eram diretas e rápidas demais. O scan feito na sala, a conversa observada, as idas e voltas de material na carteira, todas as divagações e o machucado que ele fez no dedo, tudo tinha sido feito em, literalmente, cinco minutos. Agora que ele parara pra pensar, a conversa entre a inspetora e o superior tinha durado pouquíssimo mais de um minuto, por isso que o cara tinha “sumido” enquanto ele pensava. Respirou bem fundo novamente, tentando ser mais devagar do que da primeira vez, exalando bem mais lentamente do que de costume, conseguindo sentir o coração batendo forte, protestando contra a respiração lenta no meio de tanto stress. Podia ser pior, o tempo podia estar voltando.
Plec!
Rob olhou imediatamente para baixo para ver se não estava se mutilando, novamente, sem perceber, seu queixo se aproximando do peito, mesmo sabendo que era da frente que o barulho vinha. Ele inspecionou a carteira e as mãos de qualquer maneira, lembrando então do seu dedo machucado, o sangue quase sujando a mesa. Aproveitando a cabeça levemente inclinada pra baixo ele enfiou novamente o dedão na boca, mais pontada de dor, mais gosto de sangue, antes de olhar pra fonte do barulho.
O garoto de cabelos lisos, vestido de branco, sentado à sua diagonal esquerda. Essa era a fonte. Ele não trouxera mochila ou material visível, mas sua calça, também branca, tinha muitos bolsos, e era de um deles que ele tinha tirado o lápis que fizera o barulho. O garoto pegou o lápis pela ponta de grafite e o segurou, ereto, sobre a carteira, apoiado sobre ela pela base traseira. Diferente dos lápis de Rob, curtos, de várias faces e com uma borracha, já moída e mastigada, na ponta, o lápis do garoto era completamente preto, redondo, inteiro, com o mesmo comprimento original de fábrica, uma ponta perfeita e afiada, outra completamente plana. E agora o lápis estava de pé sobre a mesa, apoiado apenas na sua superfície plana, enquanto o garoto afastava as mãos lentamente, arrastando-as na mesa, fazendo proteção caso o lápis decidisse cair. E assim todos permaneceram por um minuto inteiro. Lápis em pé. Mãos ao redor. Rob Olhando.
Com um olhar abobado, Rob olhou pra sua carteira. Quase todos os materiais estavam guardados, salvo as borrachas e o apontador, mas ele precisava tentar aquilo. Os lápis tinham sido a primeira coisa que ele guardara. Mas ele precisava tentar isso. Então lá se foram todos os materiais pra mesa novamente. Tirar apenas os lápis não tinha sido possível, não em duas tentativas, melhor tirar tudo do caminho de uma vez, afinal de contas, depois de tantas vezes, Rob já estava pegando o jeito de guardar as coisas, mas após tirar todos os obstáculos e chegar ao objeto desejado, ele lembrou, olhando para seus lápis, que não era possível apoiá-los em borrachas mordidas.
A impossibilidade de equilibrar os próprios lápis foi, em certo aspecto, uma vantagem, pois isso obrigou Rob a tentar, claramente sem sucesso, a equilibrar TODOS os outros materiais, inclusive a tesoura e o cortador de unhas, afinal de contas, eles já estavam ali mesmo. Mas cada um dos trecos que ele tentou equilibrar de pé caiu para algum lado, emitindo um plec ou um plac, como fizeram da primeira vez que saíram do invólucro.
Olhando todos os materiais diferentes caídos pela carteira, como um exército massacrado em uma batalha impossível, Rob olhou pra sua última esperança, pegou o apontador, com seis lados planos, e plantou bem no centro dos soldados caídos. Pronto! Esse não cai!
Plec!
O barulho veio da frente, como o anterior, mas Rob não conseguiu evitar olhar fixamente, com os mesmos olhos duros e rosto franzido, pra ter certeza que ele estava alí, de pé, maior comprimento pra cima. Não era um lápis, mas era melhor que nada. Afinal de contas, como esse moleque consegue!?
Olhando pra frente ele pode ver novamente, claramente, as mãos estrategicamente posicionadas naquela posição de segurança, o lápis perfeitamente equilibrado. Estático. Sem se mexer ou vibrar. De ponta cabeça. Apoiado apenas pelo ponto em que sua grafite, tão bem apontada que parecia perigosa, encontrava o plano liso da mesa.
Os três ficaram parados. Estáticos. Enquanto o tempo passava. Tudo passava e mudava em volta. Nada percebia o que Rob percebia. Aquela cena que desafiava qualquer lógica. Aquele parado tão absoluto que parecia segurar tudo à sua volta no lugar. Só o tempo caminhava. Só o lápis importava.
Ainda encarando a cena, com movimentos que apenas permeavam a consciência, Rob pegou uma caneta, colocou com a ponta na mesa, uma mão fazendo um anel em volta para que o fatídico barulho de caneta na mesa não quebrasse a santidade da cena, e soltou. A caneta tocou as coisas da sua mão de segurança, como previsto, seu rosto se virou do lápis equilibrado para o caído, e de volta para o primeiro, seu queixo caiu lentamente. Eu não sou nenhum gênio da física. . . Mas essa porra é completamente impossível. . . e foda. . .
“A Prova começa em cinco minutos”, quebrou o silencio a voz macia e incerta da inspetora, vindo do outro lado da sala, ela segurava um enorme envelope marrom, transbordando com folhas brancas. “Vou começar a entregar as folhas de resposta agora.”
Plec-prrrrrrrrrrrrr-CLAC!
Dessa vez não houve movimentos errados, olhares pra lados equivocados. O corpo de Rob, impulsionado pelos músculos tensos e ávidos por movimento, se dobrou pra frente, perna direita enrolada no pé da cadeira para manter o equilíbrio, o corpo descendo de lado pela lateral da mesa da carteira, os braços compridos se esticando, uma serpente dando o bote, capturando o lápis caído entre cinco presas e puxando-o para o campo de batalha na mesa, pros outros soldados caídos e derrotados. A mão direita, que ficara apoiada na mesa, para um pouco mais de estabilidade, capturou num tapa o apontador, o único de pé entre os utensílios. As duas mãos se juntaram e mágica foi feita. Uma, duas voltas, e meia. O lápis renasceu em sua mão. A ponta novamente precisa e afiada. Imaculada. Rob estendeu a obra de arte para seu dono.
Era a primeira vez que o via de frente. Seus cabelos eram muito lisos, numa cor acinzentada, cor de pelo de rato, cortado rente aos olhos, como uma tigela, seu rosto era bem pálido, os olhos eram um azul bem claro, cristalino, quase transparente, com pupilas muito pretas num fundo branco sem qualquer risco de vaso sanguíneo, os lábios um tanto bicudos, com o beiço inferior um pouco protuberantes, acima do nariz pequeno e curto, os olhos pareciam também pequenos, e um pouco próximos demais. O dono do lápis olhava para Rob, as pupilas voavam descontroladamente entre o lápis e os olhos, ambos na expectativa, esperando uma reação. Uma mão insegura se esticou vagarosamente em direção à mão estendida, recuando bruscamente quando uma segunda mão se juntou à primeira, segurando outro objeto. “Fica com o apontador também, caso aconteça outro acidente”, um sorriso se abriu em seus lábios enquanto ele falava, “duas voltas e meia e ele fica perfeito, okay?”. A mão insegura pegou ambos objetos de um tapa só, recuando rapidamente como se temesse que eles estivessem quentes ou que uma cobra fosse sair da manga de Rob e picar seu braço. Enquanto o garoto se virava, sem dizer uma palavra de agradecimento ou coisa parecida, Rob percebeu um outro lápis na outra mão, sem dúvida vindo de um dos bolsos da calça branca.
Não era hora de se preocupar com isso, Rob recebeu sua folha de respostas e se concentrou nela como se contivesse as respostas pras suas perguntas, ao invés de ser apenas uma folha branca, com muitos espaços pra escrever. Cada centímetro quadrado de folha imaculada parecia esconder uma resposta que ele iria precisar, e talvez encará-la fosse trazer essas respostas à sua mente. Ou talvez ele simplesmente precisasse de alguma outra coisa em que se concentrar algo que não fosse as pernas longas e sedosas d’A Professora, ou algum outro participante da prova fazendo mais alguma coisa que parecesse impossível. Menos que cinco minutos o separavam do momento fatídico, e assim que a prova começasse e ele se concentrasse em fazê-la, nada mais poderia abalar sua concentração e determinação. Ou pelo menos era isso que ele esperava.
Vamos começar pelo mais básico. Começou colocando seu próprio nome em cada uma das folhas, assinando em todas as linhas em branco que ficavam no topo da página de frente. Nome e assinatura elas pediam, linhas em branco uma do lado da outra, e era assim que ele as preenchia, com seu próprio nome em letras de forma garrafais, e ao lado, em sua letra cursiva corrida e atropelada, sua assinatura.
Alguma coisa o chamava para a mesa do garoto de olhos juntos e cabelo liso, algo como uma coceira em sua testa que o fazia levantar a cabeça, uma inquietação nos olhos que os faziam ir de um lado a outro e sempre parar na posição um pouco acima e um pouco à esquerda, fazendo sua visão permear o garoto que se concentrava em sua própria folha de prova. Ou era nos lápis que ele se concentrava? Sim era o lápis. Rob precisava por seu nome na sétima e penúltima folha de respostas mas ele estava se certificando que era no lápis em que o garoto se concentrava. Não um, mas dois agora. Duas torres gêmeas e negras erguidas uma do lado da outra, com suas bases estreitas e pontuais, seus topos planos e paralelos ao teto.
“Eu vou começar a distribuir as folhas de questões agora tudo bem?”, soou novamente a inspetora, vindo do outro lado da sala, perto da porta, tão distante de Rob, “Por favor não virem as folhas até eu dizer que vocês podem, quem for pego olhando as questões estará automaticamente desclassificado”. As palavras saíam automáticas e robóticas de sua boca. O que diabos aconteceu pra ela ficar tão nervosa? E esse moleque com os lápis!? Como ele consegue fazer isso? E como que era a fórmula de momento elétrico mesmo? Tinha uns Qs e uns Us e sei lá. Será que tinha um poema ou musiquinha pra lembrar? Porra e essas folhas completamente brancas. Se tiver que construir um gráfico eu vou ter que fazer ele do zero? Ainda bem que minha mãe colocou umas réguas aqui pra mim. Espero que ela esteja bem, ela costuma comer mal quando fica preocupada comigo. Mãe por favor não passa fome, eu to bem aqui, só um pouquinho incomodado. Caralho ela já chegou aqui?
A professora parou ao lado de sua carteira e entregou um calhamaço de folhas, essas cheias de questões escritas em preto, mesmo com as costas em branco pra cima era possível ver as linhas escritas das questões, linhas e mais linhas de perguntas elaboradas em tinta preta, se embaralhando por entre as folhas de papel branco. Rob tentou ler as últimas questões pelo reflexo do papel, qualquer coisa que ele pudesse assimilar antes do verdadeiro início da prova seria útil, mas não foi possível. Não com aquele perfume.
O cheiro de flores o rodeou e
apertou, tomando conta de todos os seus sentidos, e por um instante ele estava
em um campo aberto, sentindo o cheiro de flores selvagens que vinham de
arbustos esparsos, flores que ele tinha certeza que eram de um tom
laranja-rosado, que ficavam na sombra das arvores, e que tinham um cheiro
agradável e provocativo. Seu olhar flutuou da folha em sua mesa até o andar
‘rebolandinho’ da inspetora, as pernas longas que o guiavam, o quadris delineados
numa curva suave que se afastavam da sua visão. Não é hora de olhar essas coisas seu idiota!! Se concentra na prova!!
Quanto mais respostas você souber antes do tempo de prova começar a valer
melhor!!
Então ele se
forçou a voltar a atenção para a prova, o que custou uma carga enorme de força
de vontade, já que aquele rebolar inconsciente da inspetora travava seu olhar e
suas vontades. Mais questões precisavam ser analisadas e respondidas. Seria
isso um seno de x? Ou a questão está perguntando “Sendo x . . .”. Rob levou seu
rosto até a sua mão direita, que se apoiava pelo cotovelo na mesa, esfregando
seus olhos. Seria preciso muito mais paciência e concentração do que ele
esperava. E claro que havia aquela coceirinha no seu pescoço que o lembrava de
levantar o rosto e ver que tipo de façanha impossível o garoto de cabelos lisos
e olhos muito próximos fazia com seus lápis, ou quem sabe com algum tipo
completamente novo de material. Talvez ele estivesse fazendo as folhas de prova
dançar ao som de “Oh Happy Day”. Mas Rob não podia se preocupar com isso. Não Sua própria prova seu idiota! As
respostas nela! Isso vale metade da sua vida!
Finalmente o aval para começar a
escrever foi dado. Rob usou todas as forças existentes em seu corpo pra se
prender às perguntas na sua frente, as respostas vinham rápidas e diretas, seu
cérebro treinado durante o ano inteiro pra trazer à tona as respostas certas de
perguntas clássicas, caminhos simples e rápidos que esclareciam as preguntas e
facilitavam seu caminho até o futuro. Se não passasse nessa prova teria muitos
problemas por um bom tempo. Era mais do que o treinamento, seu preparo, era o
medo de que as coisas dessem errado que o deixava tão pronto pra tudo aquilo
que aparecesse. Perder mais um ano esperando que uma prova acontecesse
novamente era contra todos os conceitos de decência de Rob. Não bastasse o
significado da prova guiar todo o futuro de quem a responde, aqueles que não
atendessem às expectativas precisariam de pelo menos um ano até serem ouvidos
de novo. Testados de novo. Caralho se eu
estou me submetendo a um teste deveria, pelo menos, ser capaz de fazer isso
quando quisesse ou quando me sentisse melhor. . .
“Eeeee. . . Podem começar!”
Isso! Tudo que eu queria ouvir!! Ele virou a última folha da prova e começou a responder as perguntas pras quais já sabia a resposta, expor os raciocínios que já tinha montado enquanto decifrava a escrita de trás pra frente no reflexo do papel. Mas o êxtase inicial foi embora muito mais rápido do que o esperado. Todo o embalo que ele pegou enquanto respondia com certeza as últimas questões morreu quando se viu de frente com as primeiras perguntas da prova. Todo seu raciocínio precisou ser refeito. Todas as respostas precisaram ser construídas do zero. E sua concentração já não era impenetrável, pelo contrário, ter que iniciar ou recomeçar um raciocínio sempre o deixava aberto pras distrações mais comuns. Seu olha precisava checar o garoto estranho com habilidades impossíveis, o perfume impresso em sua memoria exigia que ele parasse tudo pra refletir sobre a situação, a situação de sua mãe, em casa e esperando, precisava de revisão, todos os outros participantes da prova mereciam atenção.
Isso! Tudo que eu queria ouvir!! Ele virou a última folha da prova e começou a responder as perguntas pras quais já sabia a resposta, expor os raciocínios que já tinha montado enquanto decifrava a escrita de trás pra frente no reflexo do papel. Mas o êxtase inicial foi embora muito mais rápido do que o esperado. Todo o embalo que ele pegou enquanto respondia com certeza as últimas questões morreu quando se viu de frente com as primeiras perguntas da prova. Todo seu raciocínio precisou ser refeito. Todas as respostas precisaram ser construídas do zero. E sua concentração já não era impenetrável, pelo contrário, ter que iniciar ou recomeçar um raciocínio sempre o deixava aberto pras distrações mais comuns. Seu olha precisava checar o garoto estranho com habilidades impossíveis, o perfume impresso em sua memoria exigia que ele parasse tudo pra refletir sobre a situação, a situação de sua mãe, em casa e esperando, precisava de revisão, todos os outros participantes da prova mereciam atenção.
Assim como os viciados em outros
tipos de drogas, mais claras e explicitas, que tiravam forças de algum lugar
místico pra suportar as vontades e se manterem sóbrios apesar de tudo, Rob se
obrigou a escrever as respostas, e ignorar todo o resto. Todas as pessoas, e cheiros
e pensamentos e impulsos e barulhos e comentários e tudo mais que tentava
puxá-lo da prova. Tudo corria muito bem, doze questões já foram completamente
respondidas, incluindo as perguntas que ele havia lido pelo verso da última
folha, e as coisas pareciam promissoras, até um barulho comum o invadir e
incomodar.
Crrrc-crrrc-crr.
Crrrc-crrrc-crr.
Crrrc-crrrc-crr.
Mais um que não entendeu o macete do apontador. Se continuar assim,
quando a prova terminar, ele vai ter um monte de toquinhos de grafite. Rob
controlava com todas as forças o desejo de ver o que o outro garoto estava
fazendo, ajuda-lo a apontar os lápis, contar os cachos da garota que sentava à
sua frente, verificar só mais uma vez onde estava A Professora. Muita coisa pra
fazer. Não dava pra perder tempo com o resto do mundo. Muitas coisas em jogo. A
prova era muito importante. O barulho do apontador continuava. Se repetia. De
novo e de novo. Invadia sua concentração e o obrigava a olhar. Algo estava
errado. Tudo mais importava. O corpo coçava por dentro com mais força que
nunca, principalmente exposto àquele som que se repetia agora pela décima vez.
Mas ele não podia se dar ao luxo de prestar atenção. A questão em que se
encontrava era de senos e cossenos, do tipo que botava tudo a perder com a
menor falta de atenção, e Rob precisava se concentrar, e por isso ele reparou
que agora existiam não dois, mas dez lápis na mesa do garoto, formando um
circulo perfeito com seus comprimentos negros que refletiam as luzes do teto,
suas pontas de grafite afiadas suportando seu peso, mantendo-os naquele circulo
sem falhas, de botar inveja a qualquer compasso, mas com pontas apontando para
o teto também. Os barulhos não eram de pontas quebradas tentando se reformar, e
sim das bases planas dos lápis se transformando em mais pontas.
Com duas pontas em cada objeto, as
possibilidades eram infinitas, e no mesmo momento em que a imagem passou pela
cabeça de Rob, o garoto concretizou a situação, apoiando uma ponta afiada na
outra. O circulo de dez integrantes era agora composto por cinco, mas com o
dobro da altura, pois cada ponta que antes apontava pro teto agora suportava um
outro lápis. A construção alta e circular fez Rob se lembrar do Coliseu, ambos
eram semelhantes em sua arquitetura frágil e objetiva, um dos lados poderia se
desmoronar a qualquer momento, formando a imperfeição atual que a construção de
Roma portava, mas de qualquer maneira a construção de madeira e grafite era
imponente e linda. Que tipo de idiota perderia seu tempo respondendo perguntas
objetivas quando uma das maravilhas do mundo era retratada, contra todas as
expectativas, na carteira tão próxima?
Rob se encolheu na carteira. A
perspectiva de não conseguir fazer a prova devido à sua própria falta de
atenção cultivava um desespero enorme em seu peito. Não conseguir responder às
perguntas seria uma coisa, mas perder a atenção durante metade da prova com
coisas idiotas, escrotas e impossíveis, era desesperador como os piores
pesadelos que Rob tivera, com essa mesma prova, nas últimas semanas. Ele cruzou
os braços sobre a carteira, por cima de papel e lápis e estojo, sem se
preocupar com nada que o tocava, e afundou os olhos nos braços, privando a si
mesmo de qualquer tipo de luz. Foi possível suprimir o grito de desespero, que
se tornou apenas um gemido que ecoou por seus ouvidos. Seu nariz capturava
apenas o cheiro de seu próprio braço, com resquícios bem fracos de papel e
madeira. Preciso segurar essas vontades.
Me controlar e não perder a concentração. Essa prova vale mais do que o resto
das coisas, então se eu puder conseguir me controlar e ignorar todo o resto das
coisas que acontecem nessa sala, e com isso conseguir responder a todas as
questões com bastante atenção e calma, então eu posso me distrair pelo resto do
mês. Então se controla Rob. Fica quieto no seu canto. Esquece o resto do mundo.
Foda-se que tem uma inspetora linda na sua sala. Foda-se que ela está super
nervosa com alguma coisa que você não tem ideia e não vai conseguir descobrir o
que é. Foda-se que ela está se aproximando com um par de caras largos, de terno
e óculos escuros que parecem que saíram diretamente do filme Matrix. Prova! É
tudo que você precisa! A Prova! Nada mais! Por favor. Esquece o que os outros
estão falando. Esquece que eles pararam bem ali na mesa do garoto que equilibra
as coisas. Deixa todas essas coisas estranhas acontecendo em um mundo longe de
você. Vamos Rob, você sabe que pode resistir a todas essas besteiras. Vamos
cara! Prova! Só a Prova importa! Nada mais!
Seu corpo inteiro, encolhido em
si mesmo, tremia descontroladamente, a mão segurando a lapiseira, os pés que
tentavam sentir o chão abaixo dele, os dentes rangendo e raspando, os ombros
que não aguentavam mais segurar o pescoço que queria se levantar, seus olhos
que iam e voltavam de cima pra baixo, permeando ambas as coisas que o chamavam
tão intensamente, a situação à sua frente e a prova em sua carteira. Sua
situação era pior que a de um simples viciado, o drogado iria usar o que
queria, sentir sua satisfação e esperar até a próxima fissura, mas Rob não
tinha esse consolo. Ele sabia que a fissura continuaria, principalmente agora
que ele a percebia tanto e se preocupava com ela, um ciclo infernal de perder a
atenção pra algo idiota, perder a calma com a falta de atenção, perder tempo
com a falta de calma, perder o controle com a falta de calma, perder a atenção
da primeira coisa com a próxima devido à falta de controle, e assim sem parar
até que nada mais pudesse ser feito, e ele se perdesse entre o mundo e si
mesmo, entre suas vontades e suas necessidades, entre lá e cá, entre a Prova
que valia sua vida e o impasse à sua frente, entre os senos e cossenos e a bela
moça que agora retirava seus óculos com nervosismo e insegurança, entre as
questões com seus valores e os homens de terno e óculos escuros que agora
retiravam alguma coisa pesada e metálica dos bolsos internos de seus paletós.
Agarrando a beirada da mesa com sua mão esquerda, com tanta força que o sangue
fugia de suas falanges pálidas, ele conseguiu manter os olhos na prova. Só os
olhos. Nada de atenção ou concentração. Nada de lapiseira pronta pra continuar
escrevendo suas respostas e arrecadando pontos. Por mais forte e desesperada
que fosse sua disciplina, manter seus olhos baixos enquanto sua mente viajava
por todos os campos de todas as probabilidades e seu corpo tremia contra todos
os impulsos que o viravam pra outros focos, era tudo que ele conseguia fazer.
Sua respiração ofegou e desacelerou o ritmo, como uma criança que controla o
choro, sua tremedeira atingindo um pico de espasmos e depois seguindo o mesmo
caminho decrescente. Contra todas as expectativas seu autocontrole venceu e ele
se concentrou na prova. Podia até sentir as respostas pré-formadas em
gavetinhas especiais da sua mente.
Foi quando o som o atingiu.
Era aquele som que se sentia mais
na pele do que nos ouvidos. Um pequeno estouro molhado, como uma espinha
inchada estourando, seguido pelo escorrer de fluido grosso e viscoso. Como se
ele pisasse descalço em uma enorme uva madura, que abre e estoura e vasa e
sangra suco doce e grosso na sola desprotegida de seus pés, o líquido gelado se
espalha pela pele sensível e o frio sobe como arrepio pelas pernas e pelas
costas, gelando a coluna e eriçando cada fio de cabelo, fazendo as extremidades
tremer em revulsão e o almoço tentar escapar pela garganta. Plssh!
A barreira de concentração se
rompeu como uma represa e Rob foi inundado por toda a curiosidade e desespero
por fazer qualquer coisa que não fosse aquela prova e levou seu olhar para a
fonte do som asqueroso, sabendo exatamente o que ele significava. Pessoas
comuns em suas vidinhas calmas e com a própria mente sob controle nunca
conseguiriam entender a situação tão rápido, assimilar a situação tão rápido,
mas quando o som de cabeça atingindo carteira e corpo indo ao chão chegou em
seus ouvidos Rob já sabia há muito tempo, muitos instantes, aquilo que ele iria
ver no chão à sua frente, deitada com o pescoço na carteira tombada. Mas ele
nunca seria capaz de imaginar a quantidade insana de sangue, se não tivesse
visto.
A Professora jazia no chão com
suas pernas espalhadas no chão, sem saber que não suportavam mais um corpo, sua
cabeça era uma fonte de sangue, vazando por um buraco na nuca, rachado pela
mesa que foi atingida após seu corpo girar no ar, quase como se segurado por um
eixo na cintura. O barulho molhado e repugnante não viera nenhuma uva madura,
mas de um dos lindos olhos verdes da moça, agora estourado numa massa de sangue
e nervo e lágrimas, provavelmente até um pouco de cérebro, suas pálpebras
vibravam em espasmos, tentando se fechar sobre a estaca protuberante ali
fincada, a ponta aguda permanecia intacta, diferente do grafite que abrira
caminho pela cabeça da mulher, estilhaçando-se no processo, e apontava para o
infinito, paralela ao outro olho que encarava vidrado e sem vida e vazio. Seus
braços travaram contorcidos em uma meia ação, suas mãos no meio do caminho entre
os ombros e a cabeça, a mão esquerda segurando o óculos estilhaçado na hora do
choque, óculos que poderia proteger seus olhos mas que apenas cortava suas
palmas, adicionando mais sangue à cena, a outra mão também segurava e apertava
e estilhaçava algo invisível, uma garra que balançava contra o nada.
E então tudo aconteceu muito
rápido.
A garota sentada na carteira que
caiu gritou e se levantou, chamando a atenção do resto da sala, enquanto ambos os
caras em terno preto puxavam armas dos bolsos internos de seus paletós. Com um
estrondo a mesa do garoto voou em cima de um dos caras, arrastando-o através de
alunos desnorteados e em direção à parede. O cara remanescente terminou de
sacar e apontar a sua arma. Tomando alguns passo para trás, afastando-se do garoto
de branco e de possíveis outros projéteis ele atirou. Uma. Duas. Três vezes.
Cada tiro chegou um estrondo, gritos e mais gritos de mais alunos e duas
faíscas, uma no ar perto do alvo e outra no chão ou no teto. Todas as balas
defletidas. Sem esperar uma maior reação do seu agressor, o garoto fez um
movimento vertical com o braço direito, como se jogasse algo pro céu que Rob
não conseguia enxergar, mas ele viu muito bem o outro lápis seguir ascendente e
em alta velocidade o curto caminho entre os dois e acertar a garganta do cara
com a arma. A ponta entrou certeira no pomo-de-adão do homem, perfurando até
metade do comprimento de madeira preta e depois se estilhaçando em infinitas
lascas e farpas e pó de grafite. O homem foi içado e carregado pelo momento do
projétil, disparou um tiro por reflexo que atingiu um participante da prova que
sentava na fileira das janelas. No meio da confusão uma garota baixinha correu
em direção à porta, tentando escapar, ela correu em direção à maçaneta e jogou
seu pequeno peso contra a porta, que não se moveu pois abria para dentro. O
corpo da garota balançou preso à maçaneta, indo e voltando, sem saber se
empurrava ou puxava ou se girava a maçaneta, e demorou um pouco para ela
acertar o movimento e puxar a porta com o embalo do corpo. A garota disparou
pela saída, mas a porta se fechou contra ela. Rob percebeu o movimento aberto,
amplo e óbvio que o garoto de branco fez, ainda parado no mesmo lugar, batendo
a porta contra a garota que tentava escapar, a maçaneta redonda bateu no meio
de seu braço, que se entortou em uma junta que não deveria estar ali enquanto ela
se juntava ao clube dos que voavam pela sala. A porta se bateu novamente com um
estrondo no mesmo momento que alguns lápis choviam sobre ela, silenciando seus
gritos pra sempre.
O pandemônio escalou de tamanho
dentro da sala, os gritos agora constantes, sem brechas, sempre alguém pra
gritar e cobrir o silencio dos que perdiam o fôlego ou a vida. Um garoto forte,
com cabelo curto e pinta de jogador de rúgbi correu em direção ao garoto de
camisa branca, com intenção de pará-lo ou derrubá-lo, circundando pelas costas
do garoto pra não ser percebido. A tática não deu nada certo, com garoto de
cabelos lisos virando na direção do seu atacante como se sentisse sua presença.
O lápis que estava cravado nos olhos da inspetora, agora morta, deixou sua
vítima com um eco do som molhado que fizera ao entrar e se moveu sincronizado
ao movimento de seu controlador, acompanhando seu giro e então entrando debaixo
do queixo do jogador de rúgbi, que caiu para trás como se levasse um gancho de
um pugilista. Uma outra estaca caiu em seu pescoço com força, pregando-o morto
ao chão.
O loiro, grande e usando a
jaqueta de couro também tentou seu ataque, usand a cadeira em que sentava a
pouco como arma, levantando-a sobre a cabeça e descendo com todo o peso e força
das duas mãos. Mas o garoto parecia saber de tudo que acontecia à sua volta e a
arma voou numa explosão súbita, assim como a mesa fizera anteriormente, indo em
direção ao teto e desequilibrando o loiro. Antes que pudesse se recuperar uma
outra cadeira cruzou a sala e deu um soco no estômago do cara de jaqueta, que
foi ao chão. A cadeira que ainda girava no ar pareceu parar no espaço por um
momento, e então desceu com força, o encosto martelando a cabeça do loiro
caído, extraindo um estalo seco de seu crânio.
Sem perceber os movimentos
destros que fazia, Rob havia derrubado a mesa à sua frente, encostando-se a ela
e protegendo-se como um soldado em uma trincheira, observando as cenas de sua
cobertura. Após perceber repentinamente sua posição ele se virou, se encolheu e
encostou as costas na madeira suja de sua barreira, fechando os olhos e
abraçando as pernas compridas. Ele tentava encontrar alguma calma, alguma
explicação, alguma saída, qualquer coisa, mas perante seus olhos fechados
passavam as cenas vistas há pouco, o sangue de verdade, jorrando de pessoas de
verdade. Os gritos contínuos e mais sons secos e molhados de osso e sangue
quebrando e vazando tornavam as lembranças mais vívidas. Rob não conseguia
escapar do inferno que se fechava ao seu redor.
Seu peito subia e descia
freneticamente enquanto seu coração bombeava desespero pras extremidades do seu
corpo fazendo cada pelo se eriçar no processo. Ficar parado não era uma opção.
Pensar não era uma opção. O que ele tinha que fazer era ouvir o que seu corpo
queria e fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Na hora ele ia acabar se virando e
encontrando um jeito. Ou então ia morrer como todos os outros. Mas só de saber
que morreria se mexendo e se debatendo contra todas as opções criava uma
sementinha de paz em sua alma.
O corpo agora estava um pouco
relaxado. Incrível como nesses momentos se percebe a tensão nos músculos, mesmo
que a posição desconfortável passasse despercebida perante aos problemas. Mas
com a calma e decisão ele percebia o seu corpo reclamar e se ajustou melhor
atrás de sua mesa-barricada, agachado e pronto para saltar por cima dela, mãos
segurando nas bordas e prontas pra alavancar o corpo, cabeça e rosto apenas
minimamente expostos, o suficiente pra analisar o campo que atravessaria.
Seus olhos rápidos saltaram de um
lado ao outro, passando por pessoas mortas, cadeiras e mesas viradas e sangue.
Muito sangue. Mas aquilo que prendeu seus olhos foi a visão do garoto, parado perto
do centro da sala, olhando para a parede à esquerda, a parede da janela, onde
os sobreviventes restantes estavam, suas mãos levantadas numa altura entre o
cotovelo e o ombro, como se ele segurasse uma bandeja invisível, um tabuleiro
invisível. Ao redor dele os lápis de duas pontas iam e vinham com loops e
curvas, cinco pequenas estacas de duas pontas, aquelas que não tinham se
estilhaçado nos últimos ataques, voando coordenadas como uma esquadrilha de
caças kamikaze. Sua formação era perfeita e chegou a trazer uma coceirinha na
memória de Rob, talvez algo que ele tenha visto em um jogo ou filme. Quando um
dos sobreviventes tentava esboçar reação, ou quem sabe quando dava a vontade
certa no garoto, a formação se abria e um dos aero-lápis entrava de ponta em
algum ponto macio dos estudantes restantes, atingindo sempre olhos e gargantas,
evitando ossos e outras partes mais duras que fossem precisar de uma arma mais
forte. Antes de voltar apressado pro seu esconderijo, Rob percebeu os olhos do
garoto, pupilas muito contraídas e pequenas, e o azul cristalino, quase
transparente que as rodeava, havia diminuído, agora apenas um fino anel de
vidro ao redor de pequenas bolotas pretas.
Seu corpo havia voltado a tremer.
Ainda havia um pinguinho de calma lá no fundo, que o impedia de se desesperar e
sair gritando e entrar em choque como tantos outros dentro da sala, mas ele
conseguia sentir o suor gelado escorrendo por seus braços e costas, o gosto
metálico no fundo da garganta, a leveza na cabeça. Mas ele também sentia que
não havia outra escolha sem ser correr em direção àquela porta com a maior
velocidade que suas pernas pudessem o carregar, assim como não havia outro
momento pra fazer isso se não agora. Já. Nesse exato momento. Pra ser mais
preciso. Ou talvez num contar de três. Contar até três sempre ajudava a fazer
coisas impulsivas e idiotas, certo?
Maldito lugar no fundo da sala, nada disso ia ter acontecido se eu
tivesse sentado em algum canto, lá na frente, sem enxergar nada, numa hora
dessas eu ia estar – Morto. Um. . .
Vou passar por trás dele e seguir pra porta, rezar pra ter alguém mais
importante pra ele matar, pular por cima dos obstáculos, torcer pra ele não
estar segurando a porta – Foda-se, vou correr e depois eu penso nisso. Dois.
. .
AAARGH! Merda! Merda! Merda! Caralho de prova do cacete! Eu só queria
que. . . que. . . que minha mãe não chorasse muito por mim. . . “TRÊS!”
Seus braços o impulsionaram por
cima da mesa e ele correu pra frente, pulou sobre o corpo do loiro de jaqueta
de couro e traçou uma linha reta em direção à porta, sem se preocupar com
qualquer coisa da sala, os corpos que faziam seus obstáculos, o cheiro de
sangue e a maneira que seus sapatos grudavam no chão a cada passo e faziam um
som de durex descolando, os lápis voltando a entrar em formação ao redor do seu
dono, apenas chegar na porta importava. No meio do caminho até seu destino uma
cadeira voou contra ele, bem rente ao chão, varrendo suas pernas dos apoios.
Rob girou no ar e caiu sobre seu braço esquerdo. Seus instintos e sentidos
inflamaram e ele sentia com antecipação a chuva de estacas que cairia sobre ele
a qualquer momento.
BAM-ptzCRRRZH!
Rob virou o rosto e viu, através
dos corpos e escombros que atrapalhavam sua vista baixa, os cacos de vidro,
vidro da lâmpada estourada pela bala defletida, caindo sobre o garoto que agora
usava branco e vermelho e parando antes de atingi-lo, pairando por um tempo
antes de se desviarem de seu corpo e caírem sobre o chão ensanguentado.
Era o primeiro cara com roupas de
segurança, que fora atingido e arremessado pela mesa, mas que não havia
morrido. Ele se se mantinha curvado e ofegante, apontando a arma com um braço
trêmulo enquanto o outro pendia ao lado, quebrado e inutilizado. Enquanto o
garoto se virava em sua direção ele chegou a disparar mais quatro tiros, sendo
que os últimos dois, sem apoio ou mira, nem precisaram ser defletidos pelos
poderes do assassino.
Parado sob sua ilha de sombras o
menino levantou sua mão, apontando-a para o homem machucado, assim como este
fazia com sua pistola, agora mais estável, mas ainda trêmula. Assim que o
mínimo de mira foi estabelecido ele apertou o gatilho, e a pistola explodiu na
sua mão. A explosão praticamente mutilou a mão esquerda do homem, e algumas das
balas, vindas do pente da arma, atingiram seu estômago e suas pernas. Ele caiu
sobre um dos joelhos, apertando o braço ensanguentado contra o corpo, o outro
ainda pendurado ao seu lado. Quando Rob viu as navezinhas quebrando formação e
avançando seu corpo despertou e ele voltou a correr.
Novamente a porta era tudo que
importava, ele desviava de alguns corpos, passando por cima ou em cima de
outros, o sangue era viscoso e tentava segurar seus pés novamente, os mortos
querendo mais um pra sua festa, mas pelo menos não era escorregadio. Ele não
percebia direito as coisas que passavam borradas pelos seus olhos, seu estomago
revirando como se fosse o motor que alimentava sua corrida, o gosto azedo e
metálico de medo e desespero subia ela sua garganta puxando todo o seu almoço.
Toda a sua força de vontade se pôs à prova quando o gemido do último morto, o
último resistente, chegou aos seus ouvidos. Apenas mais alguns metros, mais uns
corpos, alguns obstáculos. Nada podia segurá-lo. Exatamente no meio da reta
final que o separava da porta estava uma carteira caída, a mesa virada no chão
exatamente como a sua própria, no fundo da sala, a cadeira correspondente
também emborcada, um pouco antes. Sem pensar se existia um modo mais fácil ele
pisou na cadeira e saltou sobre a mesa.
O salto desenhou um arco perfeito
no ar, o típico arco que ele deveria estar fazendo e calculando na prova, a
prova que deveria significar metade da sua vida restante, e não toda ela. Seu
corpo subiu parabolicamente, atingindo um máximo, o estômago sensível de Rob
chegou a sentir o momento em que deixava de ir contra a terra e passou a ir a
favor dela. Pra baixo. Todas as coisas acabavam indo pra baixo. Mas de repente
Rob parou como uma certa cadeira havia parado, pouco tempo atrás, no meio do
ar, e foi jogado para o lado. De repente a parede à sua esquerda, oposta à
porta tão desejada, tão necessária, era pra
baixo, e ele caiu. As mãos saltando em direção à maçaneta que se
distanciava mais e mais. Ele caiu com o mesmo ombro esquerdo com o qual caíra
no chão, e sua cabeça chicotou na parede.
Quando o chão voltou a ficar em
baixo sua bunda o acertou com peso. Rob piscou seus olhos algumas vezes,
tentando afastar a escuridão e as estrelas que a dominavam. Ele precisava ver a
porta. A saída. Mas tudo que ele viu foi o garoto de branco, completamente
manchado de sangue, em suas roupas e braços e rosto. Seus olhos eram um mar
infinito de branco, suas íris completamente desaparecidas, suas pupilas dois
pontinhos muito pretos, como duas cabeças de alfinete na imensidão branca. Suas
feições curtas, de olhos juntos e boca apertada lembraram a Rob uma doninha
raivosa, que não rosnava, mas odiava.
Apenas um aero-lápis voava ao
redor do garoto, em órbitas instáveis e mutáveis, passando por debaixo de seus
braços, ao redor do pescoço e cabeça, a visão reforçava a tontura e
desorientação de Rob. Sua mão direita se levantou lentamente, a estaca voadora
circulando-a em direção à ponta, a mente confusa e desnorteada de Rob o lembrou
daqueles canudos enormes e espirais por onde era possível acompanhar o
refrigerante subindo.
O projétil foi lançado rápido
demais pra Rob perceber, literalmente no tempo de um piscar de olhos que quando
se abriram e viram a morte se aproximando voltaram a se fechar em reflexo. O
lápis foi parar no meio dos olhos de Rob, e após bater novamente a nuca na
parede, o sangue quente espirrou e escorreu.
Thump.Thump.Thump.
Sua cabeça latejava. Pulsava por
dentro, expandindo da nuca pros olhos. Minha
cabeça ta doendo. Era pra eu estar sentindo dor? Eu vou sentir dor o resto da vida?
O resto da morte? Meus olhos também doem. Eu posso abrir eles? Sua vista
ainda estava turva e escura, pontinhos piscando em todos os lugares, difícil de
focar em qualquer coisa. Quando a névoa deixou seus olhos ele enxergou
novamente a ponta do lápis, a menos de uma polegada de seus olhos. Seu
corpo estremeceu de surpresa, e sua
reação teria macetado a nuca novamente na parede caso ambas já não estivessem
encostadas. Mas e o sangue? O calor
úmido levou seu olhar pra baixo, pros seus jeans encharcados de urina, ver o
projétil vindo em sua direção não só fez sua cabeça recuar contra a parede como
fez sua bexiga se soltar completamente.
Rob voltou sua visão para o
lápis, que por estar parado bem entre seus olhos o obrigava a contrair a visão
como se olhasse o próprio nariz, e a posição estranha fez sua cabeça pulsar
mais fortemente. Ele sabia o que era a presença que estava além do lápis, mas
ele tinha muito medo de encará-la de frente. Talvez fosse só isso que o garoto
estivesse esperando antes de dar o golpe final. Mas a cabeça latejando tornava
impossível olhar pro ponto tão próximo, então ele sucumbiu e encarou seu algoz.
O garoto com suas feições de
doninha, olhos brancos e próximos, sem íris e de pupilas minúsculas o encarava,
com o braço estendido. Mas algo era diferente da posição que usara tantas
vezes, não era a mão aberta com a palma pra frente, empurrando a morte contra
seus inimigos, era uma palma aberta e pro teto, ela oferecia algo. Mas o que?
Apesar de ter feições tão estranhas Rob pareceu sentir impaciência no garoto.
Ou seria a sua própria impaciência?
Como não havia opções b ou c, e a
única coisa à sua frente era o lápis, Rob o apanhou, com o movimento mais
rápido que seu corpo grogue conseguiu fazer, com medo de que a estaca deixasse
seu lugar flutuante no espaço e decidisse entrar em sua cabeça. A ponta que
apontava pra ele até agora a pouco era pristina e afiada, mortal, mas a outra
ponta, a que ele não conseguia enxergar da perspectiva desconfortável, era
pesada, lisa, quadrada. Seu apontador, com o reservatório cheio até a borda de
lascas de lápis e pó de grafite.
Rob olhou para do objeto em suas
mãos pro garoto à sua frente, de volta para o primeiro e terminando no garoto,
que se virou, calado, e seguiu em direção à prova. Rob tentou chamar, perguntar
algo, tantas perguntas, tanta dúvida, tanto a se dizer, mas sua garganta
parecia empelotada, obstruída, seca.
O menino abriu a porta sem usar
as mãos, e saiu da sala, rumando em direção à escada principal, que unia todos
os andares do prédio, e bateu a porta às suas costas quando estava no meio do
caminho.
Rob observou o garoto indo
embora, abismado, sem saber o que fazer. O cheiro de sangue chamou sua atenção
e ele, sem pensar, olhou para a sua direita, para a multidão de mortos. Demorou
menos de um segundo pra sua mente tirar uma foto daquela cena, todo aquele
sangue pelas paredes, pessoas com estacas fincadas em olhos e gargantas, outras com crânios ou caixas torácicas
esmagadas por mesas e cadeiras. Menos de um segundo e ele sabia que iria
lembrar disso pelo resto da vida -- se é
que eu tenho muito mais tempo de vida – sempre que fechasse os olhos ou
tentasse dormir.
Sua cabeça ainda latejava, e um
novo tipo de dor aflorava, uma dor que lembrava a Rob a expressão “Minhocas na
Cabeça”, mas não eram minhocas, e sim formigas, andando de um ponto ao outro,
abrindo buracos e carregando coisas de um lado ao outro de seu cérebro. Suas
pernas recusavam a içar seu corpo, suas mãos tremiam, segurando o apontador que
fora devolvido a ele.
Passado alguns minutos, ou quem
sabe algumas horas, ele conseguiu se levantar e se arrastar em direção à porta.
A maçaneta parecia dura demais, escorregadia demais, quase como em um pesadelo,
como se sua mão nem conseguisse fechar sobre a esfera de alumínio. Mas Rob não
se desesperou. Sua cabeça estava vazia. Deserta. Apenas a dor pulsando e as
formigas trabalhando. Ele decidiu usar as duas mãos, e percebeu que sua outra
mão, a que não tentava abrir a porta, havia guardado o apontador em seu bolso
do jeans, ainda molhado, e permanecido lá. Duas mãos fizeram o trabalho e ele
saiu pela porta, deixando a morte pra trás.
Enquanto ele repetia o caminho do
garoto assassino suas pernas fracas e cambaleantes melhoraram um pouco, e
quando ele chegou à mesma distancia em que o garoto fechara a porta às suas
costas, ele fez uma curva brusca pra esquerda. Por algum motivo não era pela
escada principal que ele queria descer. Não. Perigoso demais. Ele iria descer
pela escada de incêndio, uma descida espiral protegida por portas corta-fogo.
A maçaneta dessa porta não era
esférica, era do tipo mais fácil e amigável, um palito de sorvete, preto e de
plástico lustroso, facilmente aberto pelo peso apoiado de um rapaz
atordoado. A porta abriu com um rangido
agudo, aumentado e ecoado várias vezes pelo espiral de concreto que subia e
descia. Rob olhou à sua volta, a vista agora já completamente livre de qualquer
tipo de névoa ou pontos cintilantes, e lembrou que estava no quarto andar. Ainda bem que eu não tentei pular pela
janela. E a vista de sangue e morte voltou à sua mente, fazendo as formigas
trabalharem mais rápido. Seus joelhos cederam por um momento e ele teve que se
apoiar na parede, com o ombro, suas mãos haviam fugido para os bolsos do jeans
novamente, sem que ele percebesse.
Tirou as mãos do esconderijo e
segurou o corrimão. Quatro andares era bastante pra alguém em seu estado, e os
ecos de sua descida causavam arrepios em Rob. A cada lance de escada ele
pensava que ia encontrar o garoto, decidido a terminar o trabalho, ou então se
deparar com a sala novamente. Ele poderia estar louco e alucinando com
liberdade da sala. Quem garantia que ele realmente havia saído de casa hoje de
manhã? Fazer a viagem para a prova uma vez só era muito suspeito. Ao invés de
pegar o ônibus ele poderia ter sido pego pelo ônibus, e estar na UTI agora, sua
mãe chorando e morrendo ao seu lado. Não,
mãe, não se preocupa, eu to indo pra casa. Mas estava mesmo? Não dava para
saber, dava? Não, não dava. E a cada andar sua cabeça parecia rodar mais e
mais, sem nunca parar de latejar, sem nunca se livrar das formigas. O ônibus bateu, isso mesmo, ele bateu num
poste e eu estourei minha cabeça no banco da frente. Eu vi meus lápis voando
pelo ar e imaginei tudo isso. Só pode ser. Não duvido nada. Ele virou a
esquina de mais um lance de escadas, o corpo enrijecendo esperando as piores
coisas, mas não encontrando nada. Segundo andar. Já passei por aqui antes! Tenho certeza! Eu vou continuar descendo essa
escada espiral e ouvindo esses ecos e esperando todos os monstros do mundo
atrás da esquina e quando eu achar que cheguei no térreo eu vou estar de volta
no quarto andar. Ou na sala. Provavelmente na sala. Enquanto minha mãe grita e
chora do lado da minha cama de hospital ou maca de ambulância.
Mas o térreo chegou. Sem mais
esquinas e lances de escada à esquerda, apenas a porta corta-fogo azul à sua
frente, diferente das outras, essa porta era daquelas que abria com uma barra
anti-pânico, era só empurrar a porta pela barra que o caminho se abria e todos
os problemas ficariam para trás, dentro do prédio. Ele parou no último degrau,
antes de pisar em terra firme de verdade. A escada era conhecida, a terra
poderia guardar infinitos infortúnios diferentes. E quem disse que essa porta vai me levar pra rua? E a rua, quem disse
que ela vai me levar pra casa? Eu vou vagar pra sempre, esperar o ônibus pra
sempre até me deparar com a sala de novo, o sangue e a morte e todo esse
desespero pra sempre. Isso se ele não estiver me esperando lá fora, com todas
aquelas estacas voadoras esperando pra me empalar em todos os lugares
possíveis, e, quando eu morrer, vou voltar pra dentro daquela sala, ou quem
sabe pra dentro do ônibus, mas isso não muda o fato de que eu não vou conseguir
escapar dessa merda porque eu to condenado e essa porta não leva pra saída ou
pra minha casa, só pra mais desespero e mais morte e – PARA!!
Sua cabeça latejava com o mesmo
ritmo de seu coração acelerado, seu cérebro era a maior fazenda de formigas do
mundo, formigas gordas e ávidas por se mexer e fazer alguma coisa assim como o
dono do cérebro em que elas abriam caminhos e mais caminhos. Para com isso! Para de pensar em todas as
merdas que podem dar errado e faz o que você tem que fazer. Você correu quando
teve que correr e vai abrir a porta agora que tem que abrir a porta. Você vai
respirar fundo e só vai pensar em abrir a porra dessa porta, e foda-se se a
porra do Godzilla tiver do outro lado querendo comer seu cu! Se acalma e volta
pra casa! Pra onde você tem que ir!
Rob então se segurou na parede e
no corrimão, antecipando a tontura que costumava vir com esse tipo de suspiro. Tudo que eu quero é abrir a porta e ir
embora. . . Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça, inspirou bem fundo,
levantando a cabeça e sentindo o ar estático da escadaria entrar em seu corpo,
e assim que seus pulmões atingiram capacidade máxima ele soltou o ar com toda a
força.
Dum-chlak!
A porta se abriu, a
barra-maçaneta pressionada contra o plano azul, revelando a rua dos fundos do
prédio. Rob observou a tarde ensolarada que o esperava lá fora. Ainda parado no
último degrau. Há três metros da porta.
A dor de cabeça parou. As pernas
e braços ganharam força. As formigas pararam de trabalhar. Rob ainda sentia
elas ali, calmas, bem devagarinho, mas ainda ali. Mas as vozes na sua cabeça,
sua própria voz, pararam, lavadas naquela ação impressionante, mas estranhamente
natural. Ele olhou a palma de sua mão suada, flexionou os dedos e então à
guardou no bolso novamente.
As coisas pareciam simples agora.
Ele tinha passado em um tipo de prova, uma que não necessitava de formulas ou
informações decoradas, e isso mudara o resto de sua vida. Havia muito mais a
ser feito agora, muitas coisas pra passar pela sua cabeça e chamar a sua
atenção, mas ele não precisava mais se render a elas. Tudo que ele precisava
era fazer o que mais queria. Sair por aquela porta e voltar pra casa.
Quando eu tinha meus 12 anos, e assistia todos os filmes com algum tipo de referencia ao terror que existiam na locadora perto de casa, eu vi um filme sobre 5 amigas que fazem um pacto, se tornam bruxas poderosas, e usam seus poderes pra conseguir roupas, dinheiro, e , claramente, fornicar. No começo do filme, pra introduzir que essas garotas já possuem alguma aptidão com magia, mostra uma delas equilibrando um lápis pela ponta. Mesmo não lembrando o nome do filme ou a cara das atrizes eu lembro dessa cena muito bem e ainda hoje penso "Caralho eu com certeza faria algo assim!", mais ou menos no meio do meu ultimo periodo letivo eu extrapolei a ideia, claro, juntamente com infinitos outros fragmentos de ideias que se juntam, e a cena nasceu.
Ah! E sim. Minha cabeça funciona basicamente do mesmo jeito que o Rob, só que eu suavisei a situação pra vocês (quase) conseguirem entenderem o que se passa, haha.
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