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sábado, 7 de janeiro de 2012

Clarissa

            “O metrô já fechou”, disse ela.
             “Mas o ultimo trem circular sai em quinze minutos”, disse ele.
             “Tá legal. Mas você sabe que pode dormir por aqui.”
             “E você sabe que se seus pais chegarem de manhã e me virem aqui, eles vão surtar e achar que a filha deles é uma promíscua fornicadora.” Disse com um sorriso no rosto.


             “Foda-se o que meus pais pensam.” Não seria a primeira coisa errada que eles pensam sobre mim, de qualquer maneira. “E você estaria dormindo na minha casa e não comigo.”
             “Eu sei, mas prefiro evitar os problemas que eu puder. Quanto menos encrenca você tiver com seus pais vai acabar sendo melhor pra todo mundo.”
             “Tá bom. Tá bom. Vai logo então, se você perder o trem eu não vou abrir de novo pra você.”
             “Aí eu vou ter que dormir na sua soleira, no frio, e vou ficar doente, e vou morrer, e aí não vai ter ninguém pra assistir filmes ruins com você e você vai morrer solitária no mundo, cheia de desgosto.”
            Um leve sorriso se formou em seus lábios. “Já entendi, senhor melodramático. Vai antes que você perca o trem e morra.”
            Ele respondeu o sorriso e se aproximou mais um passo. “Olha Rissa, eu sei que tem alguma coisa bem séria te incomodando. Mas se você não conseguiu me dizer hoje, tudo bem. Amanhã agente se encontra e conversa sobre isso”
            Clarissa desviou o olhar durante menos de um segundo, tocou em seu próprio braço direito com a mão esquerda. “Não é nada. Amanhã agente conversa. Vai.” Ele tocou sua face de um lado e beijou seu rosto no outro. Ela apreciou o calor em seu rosto por um momento. Era impossível dizer qual lado era mais quente, provavelmente a mão. “Se cuida.”
            Ele seguiu de costas até a porta. “Você também Rissa. Dorme bem e sonha comigo tá?” Com um sorriso.
             “Corre!” Respondeu ela com um sorriso. Quando a porta se fechou, seu sorriso se desmanchou lentamente. Quem dera as coisas fossem fáceis assim.
           
Ela trancou a porta da frente. Subiu para seu quarto. Preparou as roupas de dormir. Despiu-se. Rumou para o banho. A ducha fria atingia sua pele em gotas grossas e pesadas que puxavam seu sangue pra superfície da pele, lavando o cansaço e a sujeira, deixando-a mais limpa e mais leve. Mesmo após o banho ela continuava exausta, mas o calor que sentia em seu corpo após o banho gelado era deveras reconfortante.
            Depois de se trocar seguiu para a cozinha. Encheu um copo com vodka e uma pedra de gelo.  Retornou então para seu quarto onde a sacada a esperava. Sua casa ficava em uma colina, próxima à encosta. Apesar de não ser muito perto, a elevação permitia uma vista do mar, quando na sacada de seu quarto. A noite, entretanto, era de sem-lua, e a vista era pouco mais que semelhantes tons de preto que se encontravam e se confundiam ao longe.
            Ainda assim, ela encarava o horizonte nebuloso, seus pés descalços estavam em contato direto com o chão de pedra fria, mas ela não ligava, os antebraços apoiados na sacada metálica, o copo com o gelo e a bebida pendendo sobre o terreno abaixo. Enquanto o copo descansava, em algum ponto entre meio cheio e meio vazio, uma brisa com um fraco cheiro de sal encontrou Clarissa. Ela inspirou até que seus pulmões formigassem. Expirou lentamente sentindo a mente agitada tremular e se acalmar aos poucos, sentindo até um pouco de tontura. Idiota orgulhosa. Na noite escura e silenciosa o fraco som de uma onda particularmente forte também quebrou em seus ouvidos. Ele nunca iria rir dos seus problemas. Capaz de você mesma acabar rindo de toda a situação.
            Não faltou oportunidade para que eles conversassem ao longo do dia. Por um momento até pensei que ele ia perguntar se havia algo de errado. Mas o dia correu calmo e suave, eles almoçaram juntos, assistiram um filme que parecia muito melhor no trailer e na sinopse, beberam , conversaram, comeram, mataram o tempo. Todos os olhares estranhos e silêncios constrangedores foram logo substituídos por um sorriso e uma mudança de assunto, nenhum problema nunca veio à tona. Tenho que admitir que ele se esforça. Tudo que assolava sua mente permanecera submerso e enterrado o dia inteiro, mas isso mudara. Ele foi, eu fiquei.
           
Nesse momento o copo já estava vazio, o gelo uma parcela do que já fora, tilintando no copo suspenso. Ela virou o copo e capturou o gelo com a boca, o gelo derretia e se espalhava por sua língua, que formigava enquanto jogava a pedra de um lado pro outro. A sensação era boa e calmante, apesar do frio da noite, que a rodeava. Não adianta nada pensar no que podia ter sido. Eu vou dormir uma bela noite de sono e resolver meus problemas. Ela deu as costas para a escuridão e voltou para dentro de seu quarto. Ela mastigou e terminou com o restinho do gelo. Olhou para o copo vazio em sua mão e o depositou em seu criado-mudo. Espero não precisar beber até pegar no sono.
            Não foi necessário. Após apagar as luzes e deitar estirada na cama seus olhos logo se fecharam. O mundo deslizou e se afastou. Os sentidos se foram. O sono veio.
            Seus olhos se abriram na escuridão. A boca seca. Uma sensação desconfortável. Seu corpo parecia coçar por dentro. Ela se levantou da cama e encarou o quarto mergulhado em trevas. Quase nada era visível, seus móveis eram apenas volumes disformes na escuridão. Ela precisava lavar o rosto, beber um copo d’água, ir ao banheiro, qualquer coisa.
            Seus passos seguiam um tanto inseguros e cambaleantes, cegos dentro do quarto. Foi em qualquer lugar entre sua cama e sua porta que a mão a encontrou. Sua respiração foi cortada na garganta e seu corpo se chocou contra a parede invisível, antes do seu lado, agora às suas costas. Seu ombro esquerdo sentiu o impacto da parede primeiro, e sua visão teria se turvado, se algo pudesse ser visto.
            A mão que a segurava e empurrava e estrangulava era enorme. Grande o suficiente cobrir todo seu pescoço sem esforço. Seu atacante era um com a escuridão. Ela sabia que ele era enorme pelo tamanho da mão, e porque ele parecia fazer sombra em cima dela, mesmo que não existisse nenhuma luz no recinto. Seu rosto não se diferenciava nada do resto do quarto. Era apenas uma sombra em contraste com mais sombras. Mas ela sabia que ele estava sorrindo.
            Suas unhas rumaram direto para a mão grotesca que a prendia, tentando abri-la, nos dedos ou na carne. Era como tentar cortar couro com uma faca de plástico. Uma de suas mãos em garras seguiu para o rosto do atacante, tentando cegá-lo, afastá-lo, mas o rosto continuava distante demais alem da extensão do braço enorme.
            Clarissa ainda se debatia e arranhava e chutava quando a lâmina entrou horizontalmente em sua barriga. A lâmina entrou e trouxe consigo um calor imenso que se espalhou por seu corpo, queimando-a por dentro. A criatura grunhiu entre o esforço e o êxtase. Seu sorriso invisível se alargou na escuridão. Os braços de Clarissa penderam pesados ao longo de seu corpo.
            Foi apenas o primeiro. A criatura continuou a apunhalar a garota. O atacante metia a lâmina com o corpo inteiro, sempre com muita força e um grunhido bestial, extasiado, praticamente sexual. A lâmina entrava horizontalmente no abdome da garota, mandando sempre uma onda de calor consigo. Era como se chamas estivessem abrindo caminho dentro do corpo dela, formando um novo sistema de veias e artérias de puro fogo. O calor ondulava dentro dela e reluzia vermelho e laranja e pulsante por seus braços e pernas e rosto. Sangue tentou escapar de suas entranhas por sua boca, travando no aperto mortal e definitivo de seu atacante, parando em sua garganta, afogando-a em sangue quente e desespero gélido.
            Foi quando veio o último golpe. A lâmina entrou verticalmente dessa vez, diretamente em seu útero, em seguida correndo e cortando e queimando diretamente pra cima, por cortes e órgãos e seu osso externo, parando apenas pouco acima da linha de seus seios. O corte veio unido do grunhido mais bestial e extasiado até então. Longo e pesado e arrastado, munido de todo o desejo e loucura da criatura atacante. O fogo tomou conta de todo o interior de Clarissa por um longo instante, evidenciando todas as linhas e caminhos que corriam quentes debaixo de sua pele. O aperto grotesco se abriu tremulamente ao redor de seu pescoço, agora roxo e preto e esmagado. Clarissa caiu morta escuridão do quarto.
            Mas não era o fim. Ainda não. Seu corpo jazia queimando e imóvel no chão. Ela não respirava ou piscava ou pensava. Ainda assim ela estava lá. Morta mas em seu próprio corpo. Ali. Fogo correndo em seu próprio corpo como o sangue que perdera. Apenas resquícios de uma consciência em um cadáver. Ainda assim ela sentiu quando as presas secas e geladas arrancaram um pedaço de seu pescoço.
            A criatura não parou. Cada mordida era como se um pedaço de Clarissa simplesmente se destacasse e sumisse. Carne sendo trocada por escuridão e frio e nada. Os ataques eram ferozes e incessantes. A criatura mordia e arrancava pedaços de pescoço e braços e pernas e seios e órgãos e rosto. Pedaço por pedaço, mordida por mordida, Clarissa ia sendo devorada por seu assassino. Seu corpo antes inflamado por dentro sumia aos poucos, tornando-se parte da escuridão que a rodeava, da escuridão que a devorava.
            O Nada tomou conta de Clarissa. A criatura terminou seu banquete. Não havia mais Clarissa.
            Seus olhos se abriram na escuridão. Ela encarava o que seria a parede de seu quarto, se algo pudesse ser visto, de costas para a porta. Sua respiração tão rasa que não chegava a oscilar seu corpo ou a roupa de cama ou até mesmo suas narinas. Seu corpo jazia imóvel e imperceptível no quarto escuro. O suor frio a cobria, tornando sua pele grudenta e suja, colando-a em si mesma e nas roupas que usava. Em suas extremidades insensíveis, frias e imóveis, seus dedos permaneciam duros e mortos, como se tivessem gangrenado no decorrer da noite. Por fora, tudo parecia estar quieto e paralisado no tempo, mas por dentro Clarissa gritava e chorava e se debatia de medo e desespero e frustração, certa de que uma mão enorme a puxaria para a escuridão, para voltar a ser devorada. Certa de que a criatura estava em seu quarto apenas esperando o menor sinal de vida ou esperança para agarrá-la de novo, esfaqueá-la de novo, matá-la de novo.
            As três horas que se seguiram estenderam-se como três longos meses de noite e frio e solidão, até que o sol que nascia finalmente se arrastou pela janela do quarto, iluminando e clareando fracamente o quarto, a visão e a mente de Clarissa. Ela se arrastou trêmula para a beirada da cama. Pegou o copo em seu criado-mudo com as duas mãos e sentou-se. O copo em mãos como se fosse a única e melhor e maior arma que jamais teria na vida contra qualquer problema. Encarando a porta de seu quarto, aberta para a parede do corredor.
            Seus olhos vidrados encaravam a cena estática da saída, fracamente iluminada, de quarto. O dia amanhecera tão nublado quanto a noite que se fora, tornando assim imperceptível o movimento do sol. Nem as sombras se moviam. O copo estava firme em suas mãos, à beira de estourar entre seus dedos.  Sua mente empoçada como água após um temporal. Apenas ali, estática, esperando que o sol a evapore.
            Quando o sol estava a pino, entrando apenas levemente em seu quarto, Clarissa pensou ter ouvido em algum outro país uma série de estrondos, e um chamado estranhamente familiar. “Clari! Chegamos!”. Num piscar de olhos eles já estavam em seu quarto, olhando-a com aquele clássico olhar desaprovador, principalmente ela. “Você andou bebendo garota!?”, perguntou sua mãe. “Você andou se DROGANDO!? A senhorita pensa que . . .”
            O resto do sermão sumiu na névoa de sua raiva. A mente empoçada agora fervia de raiva. Já entendi pra quem eu guardei o copo. Sua mente entrava agora em foco, puxada pelo cheiro forte e característico do perfume da mãe, seu pai já havia deixado o recinto, deixando o trabalho sujo e cansativo praquela que já estava acostumada. Seus olhos se ergueram lenta e esforçadamente, vidrados e opacos e embaçados, seus músculos se tencionavam e contraiam, e por um instante o copo pareceu estalar e trincar em suas mãos. Não! É isso que ela quer! Clarissa fechou os olhos por uns dois segundos e encarou a mãe. A luz havia voltado a seus próprios olhos.
             “Não importa!” Interrompeu Clarissa. Seus olhos penetrando e desafiando sua mãe, frente a frente, decididos, inflexíveis. Isso machuca ela mais do que qualquer copo na cara. “Mesmo que a senhora não acredite, eu tenho plena noção das coisas que eu faço.” Ela levantou, ainda encarando a mãe, de cima agora, era uns belos centímetros mais alta. “Agora, se a senhora puder me dar licença, eu queria me trocar. No meu quarto. Com privacidade.”
            Sua mãe se engasgou em indignação, abriu a boca, fechou, abriu novamente, soltou apenas um “Humph!” transbordando de raiva e rumou para fora do quarto. Clarissa a seguiu de perto, fechou a porta com o máximo de delicadeza possível na situação e a barrou com as costas. Ela deslizou até sentar-se no chão, ainda apoiada na porta. Sua blusa de dormir não deslizou com ela e suas costas ficaram expostas ao frio da madeira.
            Ela fechou os olhos, respirou fundo até que seus pulmões formigassem muito mais do que na noite anterior. Soltou o ar em longos dez segundos sentindo a cabeça ondular e se acalmar. Olhou através do quarto para a janela e o céu alem dela. Isso mesmo. Resolver os problemas.

Um comentário:

  1. Quanto mistério neste episódio... e a descrição do pesadelo é tão boa que deixa os leitores sem ar.

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