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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A Volta - I

            O ar da noite jazia estático e pesado. Não havia lua e as nuvens encobriam as estrelas. A ausência de luz natural dava uma aparência acinzentada ao ar, tornando-o espesso. Zeck prosseguia caminhando através da noite. Atravessando os escassos poços de luz alaranjada deixado pelos postes das esquinas. Seus passos seguiam lentos e esforçados. Era como atravessar uma piscina. De lama. Com botas de cimento.     

            A noite também estava fria. Apesar de não ventar, e o outono ainda estar no meio de seu curso, o frio se infiltrava pelas roupas e pela pele, parando apenas bem próximo dos ossos. O casaco leve que ele usava ainda resistia e servia ao seu propósito, mas a situação poderia piorar a qualquer momento. Um momento bem próximo, do jeito que as coisas vão.     
            Apesar do frio e do esforço, sua mente já estava mais calma e lúcida. O mundo à sua volta retornava como em um filme, em que as cenas transitam lentamente de uma para a outra, deixando fantasmas de um cenário no outro. Ele agora percebia claramente o ambiente à sua volta. Olhando tudo ao mesmo tempo e uma coisa de cada vez.       
            A avenida por onde andava era essencialmente comercial, à sua esquerda encontravam-se apenas portas retrateis de ferro, fechadas e escuras e iguais, repetindo-se infinitamente pela noite. O caminho não levava diretamente à sua casa. A reta do caminho mais curto cortaria pelos quarteirões, numa rota quase perpendicular à da avenida que seguia. Mas adentrar o bairro seria uma péssima idéia. Os quarteirões internos eram todos irregulares, tornando as ruas sinuosas e cheias de subidas e descidas e becos sem saída. Uma linha reta facilmente se tornava um circulo ou uma espiral, e o caminho mais fácil se tornaria um labirinto num piscar de olhos, e a última coisa que Zeck queria essa noite era se perder.  
            À sua direita corriam, lado a lado, a avenida, larga e extensa, e os trilhos suspensos de trem, que projetavam ainda mais sombra sobre as ruas desertas. Apesar de fazer um trajeto circular, os trilhos na verdade seguiam retos por diversas avenidas de áreas mais externas da cidade, fazendo assim sua ronda ao redor da ilha. O plano de Zeck era continuar seguindo essas avenidas até se encontrar em um bairro conhecido, onde poderia finalmente ir pelo caminho mais rápido e prático em direção à sua casa, sua cama, seu conforto. Espaço aberto, uma ponte enorme indicando o caminho. . . Nada pode dar errado. Certo?  
            Mesmo caminhando firmemente e alerta, na parte de trás de sua cabeça a cena desesperadora pela qual passara continuava a se repetir. Os poços vermelhos daqueles olhos manchavam sua visão esporadicamente, queimadas em sua retina como se tivesse encarado uma luz diretamente. O gemido da criatura também custava a deixar de ecoar em sua mente, crescendo em volume e intensidade naquele espaço entre a memória e a percepção, mandando um suave tremor por sua espinha. Ele nunca tinha sofrido nenhum tipo de ataque direto dessa maneira, e nem tinha nenhuma informação a respeito do mesmo. Ele não sabia o que o atacara. Nem os motivos do atacante. Eu sei que ele não tava a fim de tomar um chá. A criatura aparecera diante dele e se aproximara o máximo que pode, estava prestes a fazer o que quer de mal que viera fazer, mas, ainda assim, se fora. E agora ele caminhava. Na verdade eu nem sei SE ele foi embora. Aquela coisa poderia estar de garupa no meu ombro ou se arrastando agarrada nos meus tornozelos nesse exato momento. Pensou enquanto atravessava outro oásis de luz alaranjada em meio à noite escura. Claro que eu iria sentir a presença dele se fosse o caso. Olhou por cima de ombro e para os calcanhares de qualquer maneira.      
            Apenas sua mochila e seus tênis.       
            Apesar da particularidade do ataque direto ocorrido essa noite, Zeck já era razoavelmente acostumado com os habitantes e acontecimentos do Além-Véu, mesmo não tendo idéia de QUE era o Véu. Aos dez anos de idade ele enxergava alguns vultos ou sombras, às vezes uma impressão de que havia alguém aqui ou ali. Mas toda criança de dez anos tem imaginação fértil, e a de Zeck era mais um agronegócio do que uma pequena fazendinha familiar. Assim a maioria dos acontecimentos acabou ignorada e esquecida, não só pelas pessoas que ouviam as histórias dele, mas por ele mesmo, que acabou resolvendo “Crescer e aprender o que é Real”. Mas não adiantou muito.  
            O dom cresceu juntamente com ele, e quando ele tinha doze anos, já sabia que o “Real” também incluía os vultos que ele via, mesmo que ninguém mais visse ou entendesse. Não que houvesse pessoas para ver ou entender. Nessa época ele já havia feito o suficiente pra se distanciar de quem podia. A anterior imaginação dele trouxe problemas, brigas, experiências e amadurecimento. Quando se tornou “Real” a melhor escolha a ser feita era manter-se quieto e despercebido para ambos os lados. O “Real” agora tinha mais forma, os vultos agora tinham olhos, vezes brilhantes, vezes escuros, as sensações que vinham de lugares e situações eram fortes demais pra serem simplesmente ignoradas, e quando as auras vieram aos treze anos, ele conseguia enxergar raiva, mentira e medo, não só nas pessoas mas em coisas e lugares.        
            A transição foi muito gradual, como o próprio crescimento de uma criança, que se mede todos os dias e não vê mudanças, mas um dia essa criança desencana e segue a vida, só pra perceber que está sete centímetros mais alto no final das férias. Quando o dom espichou os sete centímetros que deveria, e ele entendeu que as coisas realmente estavam ali, foi quando a vida de Zeck deu uma séria guinada e começou a acelerar. O dom era Dele. Apenas Dele. Ele agora observava todos os lugares e cantos e pessoas, tentando enxergar algo a mais, sentir algo a mais. Algo que apenas ele podia ver ou sentir, porque ele tinha o dom, e isso mudava tudo.          
            Seus passos prosseguiam lentos e esforçados, acompanhando as paredes metálicas que se diferenciavam apenas por seus toldos e títulos. Com as mãos nos bolsos ele não só se protegia do frio que se penetrava pelos poros de suas roupas e pele, mas também segurava firmemente o calor gelado de seu chaveiro, herança de seu pai e amuleto de sorte, aquela sensação que se acostumara a ter entre os dedos o mantinha não só mais confiante, mais alerta também, atento aos detalhes, pronto pra agir. 
            Seus olhos escaneavam a paisagem estática à sua frente, ricocheteando em suas órbitas. A calçada era irregular, gasta e um tanto quebrada devido ao uso, muitas pessoas deviam caminhar por aqui em dias de semana. Os postes de luz alaranjada ficavam apenas nas esquinas, próximos da rua, e por isso iluminando muito mais o asfalto negro do que a rua cinzenta e suja por onde andava. Ainda assim os quarteirões não eram muito grandes, e as ruas transversais que os separavam eram bem estreitas, com espaço pra pouco mais que um carro. Além da cortina escura projetada pela ponte de trilhos a cena era praticamente idêntica apesar de Zeck enxergar apenas cones alaranjados, que pareciam pequenos demais do outro lado da rua. Mas sua atenção não era apenas visual, ele também se concentrava à sua volta, tentando perceber se algo o perseguia ou rodava. E se as luzes começarem a piscar, eu começo a correr.
            Após um certo tempo de vigia e caminhada, um tempo que pareceu bem extenso para Zeck, a paisagem ao seu lado começou a se diversificar. As infinitas portas fechadas de comércios eram agora, de vez em nunca, substituídas por muros. Muros que abrigavam alguns condomínios residenciais, campos e quadras esportivas, e tipos diversos de propriedades privadas. Antes que a atmosfera da avenida mudasse completamente, a linha suspensa de trem começou a curvar-se, e antes que a curva se completasse, uma segunda avenida cortou o caminho escuro que Zeck caminhava. Ele parou por um instante em uma das quatro esquinas distantes, logo abaixo do poste de iluminação, de modo que a luz o banhava completamente.       
            À sua esquerda estava um muro, um dia pintado de branco, hoje um mosaico de anúncios de shows há muito ocorridos, propagandas de recintos há muito fechados e mensagens recentemente pichadas. Elas variavam de declarações de amor ( wiLL  aMa BetT ) a declarações de ódio  ( FODAMCE TODOZ ) ­, a maioria escrita em preto ou vermelho desbotados. A mensagem que capturou os olhos de Zeck estava escrita num verde bem claro e chamativo. Parecia estar realmente brilhando no muro, que não recebia luz diretamente do poste, brilhando como aqueles verdes fluorescentes ou fosforescentes, o brilhar de “Brilha no Escuro”. Ao contrário das outras mensagens, a grafia era bem rebuscada, floreada até. Parece letra de garota. As letras eram todas redondinhas e do mesmo tamanho, a frase estava escrita perfeitamente reta. As três palavras que a compunham empilhadas, uma em cima da outra, num espaçamento metódico, alinhadas não só consigo mesmas, mas com o horizontal do chão.

Atravesse


Véu


           
Dizia.
            Zeck permaneceu observando a mensagem durante um minuto inteiro. Seus olhos seguindo cada curva de cada linha, seguindo seus fluxos tão suaves e delicados. A completa perfeição de cada letra e palavra e da frase ao todo. No muro. No mundo. Ele agora estava a pouco menos de um palmo do muro, longe da luz do poste da esquina. A tinta agora parecia mais – viva brilhante, quando vista de perto. Era possível ver na escrita os pequenos relevos do muro, causados não só por suas irregularidades, mas por camadas descascadas de tinta. Zeck apenas percebeu onde estava quando viu sua própria mão. 
            Sua mão estava suspensa na altura de seus olhos, a apenas cinco centímetros da superfície do muro. Cinco centímetros da parte inferior da letra O. Uma parte de sua mente queria muito tocar aquela pichação. Queria sentir a tinta sobre a pele. Essa parte sabia que a tinta estava tão – fresca perfeita naquela parede que ele precisava tocar e sentir a tinta e a frase. A outra parte de sua cabeça gritava abafada que aquilo era uma idiotice, que nada viria de tocar aquele muro, que ele precisava se apressar, lugares pra ir, coisas pra fazer, que o mundo iria desabar se ele tocasse aquele muro.  
            Sua mão fez um movimento incompleto, retraindo-se e contraindo-se a apenas a ponto de aumentar a distancia em alguns milímetros. Não é hora de debater isso com a minha mente. Ele então fechou os olhos e sentiu o mundo à sua volta se tornando distante. Metros se tornavam quilômetros, segundos se tornaram horas, mas ele ainda estava lá, e a mensagem ainda estava lá, logo à sua frente. Ele sentia agora claramente que algo emanava dela. O verde brilhante se expandia das letras e atingia seus dedos e braços e rosto. Não é ruim. Nem bom. É só. . . Diferente. As letras pulsavam e ressonavam com seu batimento cardíaco, ressonavam com sua própria alma. Eu quero saber. Seus olhos se abriram e a mensagem voltou a ser apenas uma pichação no muro, seu brilho voltou a ser apenas um borrão de luz no muro escuro. Zeck terminou de estender sua mão direita.  
            Por um instante bem breve ele sentiu o úmido de tinta fresca em seus dedos anelar e médio. Por um instante mais breve ainda ele sentiu o muro ondular. A tinta ainda parecia brilhar. O muro ainda estava escuro. Sem mundo desabando. Sem efeitos drásticos ou dramáticos. Ainda assim, ele sabia que, mesmo que fosse em um nível mais básico e primitivo, ele tinha agora entendido a mensagem que deixaram – pra mim– no muro. Zeck sorriu. Firmou a mala nas costas. Fez a curva e continuou seguindo a linha de trem.  

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