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sábado, 17 de dezembro de 2011

Prólogo

            A noite era só mais um sábado à noite, voltando do mesmo lugar na mesma linha circular de trem. O último trem da noite circundava a ilha em seus trilhos suspensos 4 metros e meio acima da rua. As mesmas 17 estações,com a mesma vista mudando e deslizando e se arrastando pela janela do ultimo vagão.

            Ele gostava de sentar de costas ao sentido do trem,pra ter a impressão de que mergulhava lateralmente no mundo.Mas não dessa vez. Dessa vez era na ultima janela que apoiava sua cabeça, olhando de esguelha tanto para a paisagem da cidade quanto para os vagões da frente, que conectados formavam uma vista caleidoscópica de assentos e balaústres infinitos, terminando numa solitária porta de manutenção.
            Preciso parar de voltar tão tarde da casa dela. . . Pensou enquanto olhava o grande prédio que sempre indicava a metade do caminho. Era um prédio grande e quadrado e baixo, apenas uns quatro andares, o principal centro de convenções da cidade. O trem iria fechar suas portas a qualquer instante e seguir sua curva, deixando a estação que visa a fronte do prédio e parando apenas um pouco alem de circundar suas costas. Não dava pra passar mais uma noite sem causar problemas iminentes, mas pelo menos aproveitei até o ultimo instante.
            Não tinha muitas outras pessoas no vagão. Não tinha muitas outras pessoas no trem. Seus companheiros eram um mendigo sentado junto à divisão dos vagões, apoiado na parede e dormindo, e um casal sentado e abraçado. . .que acabara de perceber que era esse o ponto deles, e quase foi abraçado pela porta que fechava. E assim o trem dos desolados segue em direção à noite.
           
O tranco da partida foi mais forte do que o costume, tirando o sem-teto de seu transe sonolento por uns instantes, ele olhou desnorteado pela janela do outro lado do corredor, e logo voltou a dormir. Pelo menos alguém aqui consegue dormir. . .Ele encostou novamente sua cabeça na janela fria do vagão e voltou a observar a paisagem que deslizava. Era uma noite suja de nuvens, e as luzes e letreiros se destacavam no horizonte, parecendo mais fartas do que o normal, dançando em seus próprios postos. A noite o acalmava, as luzes o acalmavam. Mas não o suficiente, nunca o suficiente.
            Voltar no ultimo trem circular da noite já era quase um costume, a ida, no entanto, era o que incomodava. Ela nunca me chamou antes, eu que apareço quando quero. Se ela me queria por perto por que não disse o problema? Saber que existia um problema e não conseguir fazer nada a respeito frustrava e irritava, principalmente com alguém tão importante. Como se não bastasse ainda vou remoer isso pelo resto da noite.
           
O trem fazia a sua curva e a lateral do centro de convenções era como uma grande muralha cinzenta na noite. Poucas das luzes da noite eram visíveis nesse ponto, os pontos de azul e verde e vermelho davam lugar apenas às sombras e ao cinzento pleno. Era apenas mais uma parte do trajeto um tanto costumeiro, mas a falta dos pontos brilhantes evidenciou a oscilação do primeiro vagão.
            Claramente visível devido à envergadura do trilho, as janelas do primeiro vagão piscaram por um instante, menos de um segundo. Alguma coisa estalou ou foi impressão minha? Como se para responder a pergunta, novamente as luzes do segundo - Segundo?- vagão piscaram, fazendo um pequeno zumbido e estalido. Bzzt clicclac.
           
A curva escondia metade do terceiro carro,metade essa visível parcialmente pelo corredor que unia o trem.Bzzt clicclac. E então ele percebeu que não era apenas um vagão com problema.
            Ele se sentava no último assento do oitavo vagão, com apenas os ombros e a lombar apoiados em seu próprio assento, pés apoiados no assento lateral à sua frente. De repente a posição usual não estava mais tão confortável. Continuou parado de qualquer maneira, olhando agora fixamente para o corredor.
            Bzzt ClicClac.
            O fenômeno prosseguia a sua rotina. Zumbido ApagaAcende.Olhando fixamente para frente ele enxergava claramente o próprio vagão e os quatro à sua frente. A curva já deveria ter distorcido o corredor. Mas só com o canto do olho foi possível verificar que o trem não se movia. O barulho estava lá, o chacoalhar estava lá, a parede do centro estava lá, estática, sem se afastar ou mudar seu ângulo. Uma verdadeira muralha cinzenta que bloqueava a noite.
            BZZT CLICCLAC.
           
Foi quase um soco no estômago. O zumbido atravessava sua cabeça como uma serra, e o mero instante em que as luzes do quinto vagão se apagaram  geraram uma escuridão que parecia engolir qualquer tipo de luz adjacente.Nesse momento ele já havia percebido claramente. Tem alguma coisa vindo pra cá .Alguma coisa BEM errada.
           
Sim ele já conseguia sentir. Sentir como em várias outras situações. A sensação de que existe alguma coisa naquela direção, como quando puxam sua camisa por um ponto e você pode sentir o tecido repuxando na sua pele, grudando e forçando em seus braços e costas, indicando de onde vem o puxão. Só que mais fora do que a camisa, e mais dentro do que a pele.
            BZZT CLICCLAC!
           
Dessa vez foi um direto no nariz. A escuridão durou apenas um instante, e foi a dois vagões de distancia, mas foi possível perceber que era uma escuridão fria e espessa e absoluta. Foi quando ele percebeu que o mendigo não estava mais ali. Ninguém mais estava ali. Os eventuais pés e cabeças visíveis nos carros da frente tinham sumido em algum momento entre agora e as luzes começarem a piscar. Ou quem sabe a escuridão engoliu elas.
            BZZZZZZZT!! CLIC! CLAC!
            Hora de fazer alguma coisa cara!
Mas não era assim tão fácil. Nunca ia ser assim tão fácil. O gelado da escuridão parecia segurar cada músculo de seu corpo. Uma mão no bolso, outra segurando levemente a alça da mochila, os pés apoiados na cadeira, a posição antes confortável de quase deitar no assento. Tudo gelado. Tudo congelado no lugar. Como o trem. Como a parede que bloqueava a noite.
            BZZZZZZZZZZZZZZZZZT!!
            CLIC!
           
E era tudo escuridão.
            Mas a escuridão não veio sozinha. Seu arauto se encontrava parado bem no começo do corredor, encarando através do corredor escuro e gelado. Seus olhos eram poças de puro vermelho-sangue, sem pupilas ou brancos, apenas poças de puro escarlate. Deles escorriam lágrimas de sangue, que desciam perenemente, nunca se interrompendo ou dividindo, descendo por rosto e queixo e pescoço e peito, parando apenas no abdome, onde eram impedidas de prosseguir por trincheiras de carne cortada, uma dúzia de cortes horizontais que iam de uma lateral a outra do corpo. Mesmo a 18 metros de distancia era possível enxergar o que um dia fora órgãos e entranhas, hoje apenas massas pretas e podres.
            Os cabelos eram um emaranhado de palhas castanhas, secas e quebradiças. Sua pele era pálida como leite, coberta de nuvens cinzentas de sujeira. Era muito magro, esquelético, de membros compridos e de aparência frágil como um palito de dente, como se fosse acabar se quebrando em pedaços com o próprio peso. As unhas dos pés e das mãos eram igualmente compridas, mas divergiam no estado. As unhas dos pés eram pretas e rachadas e rotas, enquanto as das mãos eram amarelas e afiadas como garras. O filho da puta tentou arrancar as próprias tripas. Não usava roupas, mas seu sexo era apenas uma massa disforme e ensangüentada.
            O pior de tudo era a boca. Aberta e sem dentes, era apenas um poço de escuridão. Não uma escuridão qualquer, mas a mesma escuridão gelada que engolia as coisas. A mandíbula se abria cada vez mais, num ritmo lento e constante, sempre engolindo mais, gelando mais, querendo mais. E ela vai me engoli intero se eu não fizer alguma coisa! E logo! A coisa emitia um gemido constantemente. GroooooooooooooooaaaaaAAAAAAAArgh. Um som arrastado e pesado, como água escorrendo por um ralo quase totalmente obstruído. 
           
Então a coisa começou a andar. Ela balançava e cambaleava, se arrastando lenta e esforçadamente. O pé direito estava quebrado, com o peito do pé encostado na batata da perna. A finura da perna da coisa tornava a cena ainda mais bizarra, pois era possível ver o pé quase totalmente através da canela. Assim, com a perna esquerda à frente e arrastando a direita, a coisa seguiu se arrastando pelo corredor.
            Hora de fazer alguma coisa. Ela é lenta mais vai chegar aqui uma hora. Seu corpo se esforçava o máximo para ignorar suas ordens. Ainda assim ele sentiu que, em algum mundo muito distante, sua mão direita apertava a sua chave e chaveiro em seu bolso. Gelado por fora, mas, de alguma maneira, morno por dentro.  A sensação conhecida trouxe um pouco de calma e conforto perante a situação, e as coisas pareciam mais ali.
            No instante seguinte toda a calma e concentração se foram. Num piscar de olhos, uma piscadela mais literal do que figurativa, a coisa estava alem da metade do corredor, e os dezoito metros de distancia se tornaram oito. Se não é físico não precisa se locomover, ele só precisa estar. E lá ela estava. Mais perto. E se aproximando.
            A escuridão ficara muito densa. O ar, muito gelado. A sensação era de estar amarrado em puro gelo e desespero, e a única parte dele que se movia eram os olhos, ricocheteando de um lado para o outro procurando alguma saída, alguma salvação. Mesmo se esforçando muito para não piscar, a coisa piscou no espaço e cortou a distancia para míseros dois metros.
            O gemido interminável parecia ressoar em todo o trem e se concentrar, adquirindo uma altura insuportável. A coisa então estendeu seu braço, de maneira tão lenta e esforçada quanto seus passos. Era possível ver agora mais trincheiras embaixo de seus antebraços. Nelas a carne variava de um tom esbranquiçado a preto, completamente apodrecida. Uma gota de suor gelado desceu pela espinha dele, indo de seu pescoço ao quadril encostado no assento.
            As garras compridas e afiadas minimizavam a distancia entre ele e a coisa, e as pontas ameaçavam entrar em seus olhos arregalados. Seu corpo ainda recusava todo e qualquer movimento ou reação. A escuridão que o segurava parecia começar a apertar e comprimir, tentando esmagá-lo em si mesmo. A boca da coisa pendia enorme a sua frente, atingindo o começo da série de trincheiras em seu abdome. Por um momento tudo era silencio e escuridão. Então um estranho sussurro pareceu ser ouvido.
            Aconteceu tudo ao mesmo tempo. Seu corpo estremeceu com um baque. Seu quadril escorregou da forma menos confortável possível para o vão entre os assentos. Todo entorpecimento antes em seu corpo migrara para sua cabeça. Suas mãos instintivamente apertaram com força a alça da mochila e a chave no bolso. As luzes se acenderam. A porta do trem apitou e se abriu.
            Sua mente apenas começou a clarear enquanto atravessava a catraca, mas a clareza só voltou completamente quando ele desceu o último degrau da longa escadaria que ligava a rua à estação suspensa do trem. Ele olhou o relógio a tempo de ver todos os números se tornando zeros e encarou o caminho à sua frente.
            A rua se estendia em escuridão, com manchas alaranjadas vindas dos postes, pintando as esquinas e mostrando pedaços de calçada. A ferrovia suspensa pareceu tremer por um instante enquanto o trem seguia seu destino. Ele também seguiu em direção a seu próprio destino. Mais sete estações o separavam de sua casa, e nenhuma alma viva dividia o caminho com ele.
            E a noite só tá começando. . .

4 comentários:

  1. Pow Neru, que da hora que vc começo a escrever, kra! Tbm acho bem legal a ideia de criar uma estoria e ver ela evoluindo ao passar do tempo, experimentar a sensação de quem esta do ooooutro lado, escrevendo.

    Mas ta muito bom esse prologo kra, leitura fluida e um tema instigante...Nao conheço muito Stephen King, mas as influencias de GRRM foram devidamente aproveitadas, usando-as como inspiração e nao como meros acessorios...Quanto ao ambiente e as ações, consegui construi-las devidamente na minha mente, o que indica boa descrição...
    Mas eh isso kra, a estoria se mostra boa quando cria perguntas na mente do leitor (o que de fato ocorreu cmg) e não apenas o supri com amontoados de fatos...
    Vamos ver o que você nos trará pela frente...xD

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  2. Esperando pelas partes inéditas pra mim. Keep up with the good work. :D

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  3. Oiee!! =)
    Superlegal vc criar um blog pra postar o que escreve. É isso aí, socialize! haha
    Adorei o texto, bem gostoso de ler! Fiquei presa nele até o fim (e principalmente no fim).
    Espero mais que o prólogo! Vamos que vamos?
    Beijinho**

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